'Mainha do Crime': polícia investiga elo entre morte de ciclista e latrocínio de delegado em SP

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A Polícia Civil de São Paulo investiga uma possível relação entre a morte de Vitor Medrado, ciclista de 46 anos baleado na última semana perto do Parque do Povo, no Itaim Bibi, zona oeste da capital, com o latrocínio que vitimou o delegado Josenildo Belarmino de Moura Júnior, de 32 anos, ocorrido há cerca de um mês na Chácara Santo Antônio, zona sul.

Ação policial realizada na manhã desta terça-feira, 18, resultou na prisão de Suedna Barbosa Carneiro, de 41 anos. Apontada como uma espécie de financiadora de crimes de roubo, ela foi detida em Paraisópolis, na zona sul. Conforme a polícia, a suspeita é conhecida na região como "Mainha do Crime". A reportagem ainda não conseguiu localizar a defesa de Suedna.

Suedna seria responsável por fornecer armamentos a um grupo de ao menos sete criminosos, por meio de uma espécie de aluguel, e comprar os produtos roubados por eles, entre joias e celulares. A quadrilha é suspeita de cometer assaltos à mão armada e de moto em bairros da capital como no Brooklin, zona sul, e Pinheiros, zona oeste, segundo as autoridades.

"No levantamento que fizemos, chegamos a aproximadamente sete ou oito indivíduos que assaltam em conjunto (saindo) da favela do Paraisópolis e em uma (Suedna) que seria a compradora dos produtos roubados: celulares, bolsas, entre outros objetos pertencentes às vítimas", afirma o delegado Marcel Druziani, do 11º Distrito Policial (Santo Amaro).

Druziani descreve Suedna como uma espécie de líder do grupo. Segundo o delegado, a prisão dela foi resultado de uma longa investigação, iniciada há cerca de um mês, após a morte de Moura Júnior. Como mostrou o Estadão na época, o delegado tinha acabado de concluir o curso de formação da polícia e atuava no 11° DP havia pouco tempo quando foi morto.

Moura Júnior foi alvejado no último dia 14 de janeiro em tentativa de assalto enquanto caminhava pela Rua Amaro Guerra. Ele foi morto com quatro tiros: dois nas costas, um no braço e outro na garganta. "É muito triste, a gente não tem nem o que falar", disse, na época, o secretário-executivo da Segurança Pública, delegado Osvaldo Nico Gonçalves.

"Com relação ao delegado, não há dúvidas mais (de envolvimento da quadrilha que seria encabeçada por Suedna), nós já fizemos muitos levantamentos. E, com relação ao ciclista, há uma grande possibilidade de ter relação", disse o delegado, em coletiva de imprensa realizada nesta terça-feira após a prisão de Suedna.

"Trata-se de uma suspeita muito forte, mas a perícia vai ser feita ainda, porque hoje nós apreendemos três armas na casa dela: uma pistola e dois revólveres", acrescentou.

Esse segundo caso é investigado pelo 15.º Distrito Policial (Itaim Bibi), mas Druziani afirmou que prevê compartilhar possíveis informações relevantes obtidas a partir das apreensões desta terça. A ação contou também com apoio dos departamentos de Investigações Criminais (Deic) e de Polícia Judiciária da Capital (Decap).

- Vitor Felisberto Medrado morreu baleado pouco após as 6h da manhã da última quinta-feira, 13, na Rua Brigadeiro Haroldo Veloso. Ele estava em sua bicicleta quando foi abordado por dois assaltantes e, antes de esboçar qualquer reação, alvejado à queima-roupa.

Segundo Druziani, após a morte de Belarmino, várias equipes, em trabalho integrado entre as forças policiais do Estado, passaram a investigar a movimentação de motos com suspeitos de cometer assaltos. "Através de sistemas de câmeras da cidade, o SmartSampa e também o (sistema) do Estado, e outras mais, passamos a 'seguir' essas motos (suspeitas)", disse.

Ele afirma que, nesse trabalho, foram identificados suspeitos que saíam de Paraisópolis e iam até outros bairros para cometer roubos. Depois, retornavam para lá com os objetos roubados. "Começamos a fazer levantamento e obtivemos outras informações que nos deram conhecimento, nomes e prenomes pelo menos, de quem podiam ser os autores."

Os suspeitos de cometer os crimes ainda não foram localizados, mas nesta terça a polícia prendeu aquela que considera ter papel central nos roubos cometidos pela quadrilha. No endereço de Suedna, foram apreendidos três armas de fogo, mochilas de entrega, capacetes e outros acessórios possivelmente usados em crimes cometidos pela cidade.

As investigações indicam que ela alugava os equipamentos para os bandidos. "Os suspeitos usam de oito a nove motos. E eles trocam de veículos, trocam as placas do veículo, trocam as 'bags' (mochilas) de entregas. Então é muito complexo", afirmou o delegado.

Também foram encontrados cerca de R$ 21 mil em espécie, além de 18 celulares e outros equipamentos eletrônicos, que agora serão analisados pelos investigadores. "É uma cabeça econômica 'da coisa', fomenta isso. A partir do momento em que ela te dá arma e compra o que você rouba, ela é a principal cabeça ali. Sem ela, talvez esses ladrões não teriam tanta solução para as coisas que eles roubam", afirmou Druziani.

O delegado afirmou que uma das armas apreendidas com Suedna teria sido usada na morte de Belarmino, mas que a comprovação depende de exame balístico. Disse também que há a suspeita que um dos capacetes apreendidos tenha sido usado pelo autor dos disparos contra Moura Júnior. As perícias a serem realizadas nos próximos dias também podem apontar relação com outras ocorrências, acrescentou ele.

Druziani falou que a polícia também apura uma possível relação da quadrilha com o caso da médica que foi vítima de assalto na Avenida Doutor Francisco de Paula Vicente, no bairro Continental, zona oeste. "Há uma grande possibilidade", disse. Marília de Godoy Dalprá, de 67 anos, praticava exercícios na madrugada do último sábado, 15, quando foi abordada por dois homens em uma moto. Durante a ação, ela foi agredida e um dos indivíduos mordeu o dedo dela na tentativa de roubar a aliança.

De acordo com o delegado, Suedna teria confessado, em depoimento, que todas as armas apreendidas seriam dela. "Os capacetes e os celulares ela confessa que são roubados, mas nega que fomenta o crime. Porque a conduta dela é de realmente fomentar o crime", disse. "Quando ela aluga armas, quando ela cede armas e quando ela compra o produto do crime, ela está mais do que fomentando o crime, está participando ativamente dele", acrescentou.

Conforme dados da Secretaria da Segurança Pública, o número de latrocínios na capital aumentou 23,2%, em 2024 (53) ante 2023 (43), na contramão de quedas observadas em modalidades como roubos e furtos. O aumento no Estado, por sua vez, foi de 1,8%. O

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O maestro Edilson Ventureli cuidou de cada detalhe do Teatro Baccarelli, espaço que será inaugurado nesta terça-feira, 25, no Instituto Baccarelli, na região sul de São Paulo. Ele bronqueou quando percebeu que o rodapé do saguão não estava à altura do teatro. Também quis saber como os operários que trabalhavam na obra iriam remover uma mancha de solda no corrimão da escada que leva ao segundo piso.

"Eu sou chato", brinca Ventureli, que ocupa o cargo de CEO do instituto fundado pelo maestro Silvio Baccarelli (1931-2019) em 1996 para criar oportunidades para jovens da comunidade de Heliópolis, na época atingida por um grande incêndio. "Não aceito mais ou menos. Colocamos a excelência em primeiro lugar em tudo o que fazemos no Baccarelli. Não vai ser no teatro que vou abrir mão disso", completa.

É como em um concerto, questiona a reportagem do Estadão? "Sim, sou forjado para melhorar. Tenho que ficar à frente da orquestra, ouvindo 80 músicos tocando, escutar e perceber as oportunidades de melhoria. Cada dia queremos mais", diz Ventureli.

O Teatro Baccarelli abre suas portas com o título de primeira sala de concerto dentro de uma favela no mundo - Heliópolis é a maior comunidade da cidade, com uma área de 1,2 milhão de metros quadrados, de acordo com dados da Prefeitura de São Paulo.

Com 1.300 metros quadrados de área construída, o teatro, que fica na Estrada das Lágrimas, ao lado do Instituto, tem 533 lugares e acústica projetada pela Acústica & Sônica, empresa também responsável pela Sala São Paulo e o Teatro Cultura Artística - os lambris em madeira instalados atrás do palco lembram em muito o Cultura Artística. Atrás deles, armários e cortinas para regular a pressão sonora dentro da sala, de acordo com a necessidade.

O espaço será a casa da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, mas também de outras manifestações artísticas, como o rap e o funk - na semana de inauguração, uma apresentação vai reunir os cantores Péricles e Simoninha - veja a programação completa mais abaixo. Equipada com um fosso de orquestra, a sala poderá receber ainda espetáculos de dança, óperas e musicais. O objetivo é que o Teatro Baccarelli não tenha restrições artísticas ou técnicas.

"Acreditamos que, para quem tem menos, temos que oferecer mais. Por isso, sempre sonhamos com uma sala de concerto que tivesse o que há disponível de melhor no mundo. É uma sala pequena, mas equipada com o que há de melhor em técnica construtiva e de acústica", diz o maestro.

O teatro chama atenção também por suas poltronas coloridas. São cinco diferentes: amarela, vermelha, verde, azul e branca. Não por acaso. Trata-se de uma homenagem a três ruas de Heliópolis que receberam essas cores em um projeto organizado pelo arquiteto Ruy Ohtake (1938-2021) em 2004. Com isso, a sala perde qualquer traço de sisudez - mas também não perde a imponência.

O Teatro Baccarelli custou cerca de R$ 48 milhões, com R$ 32 milhões provenientes da Lei Rouanet, R$ 8 milhões do Governo do Estado de São Paulo, R$ 4 milhões em equipamentos de áudio e vídeo da Pró-Vida e a diferença em doações de pessoas físicas e de outras empresas. O patrocínio master é do Itaú.

A obra, que transformou um barranco em teatro, durou um ano e meio e atendeu a um desejo existente há pelo menos 20 anos. Ventureli acredita que, para a comunidade de Heliópolis, o Teatro Baccarelli será motivo de "orgulho" e de "pertencimento". Atualmente, o Instituo Baccarelli atende a cerca de 1.600 crianças e jovens em diferentes projetos, sempre com a música como protagonista.

O maestro conta um fato que ocorreu meses atrás, quando convidou um grupo de moradores da comunidade para fazer uma visita ao teatro, ainda em obras, sem as poltronas. "Um senhor começou a chorar muito quando entrou no teatro. Quando ele parou de chorar, me disse: 'Desculpe maestro, mas faz 30 anos que ando pelo centro de São Paulo, passo na porta do Teatro Municipal, tenho vontade de entrar, mas nunca tive coragem. Agora, minha quebrada vai ter um teatro'".

"O Municipal, o Masp, o MIS, são, sim, pertencentes a eles. Os moradores daqui têm dignidade e empoderamento para frequentar esses espaços", diz Ventureli, que chama atenção para o fato de que o Teatro Baccarelli não será exclusivo dos grupos artísticos do Instituto, mas sim "um teatro para São Paulo, para o Brasil e para o mundo", que colocará Heliópolis definitivamente na cena cultural.

"No início do Instituto, ouvimos, de forma pejorativa, que estávamos querendo transformar a música clássica em 'coisa de favela1. Agora, a música clássica é coisa de favela, sim. Com o teatro, agora, queremos receber os organismo oficiais de arte e de cultura. Queremos as grandes orquestras, grandes corais, grandes balés, usando o Baccarelli", afirma Ventureli.

Sentada na plateia do Teatro Baccarelli, assistindo ao ensaio final da apresentação de inauguração comandado pelo maestro Isaac Karabtchevsky, está Jéssica Albuquerque aprendeu a tocar teclado ainda na infância, na igreja na qual frequentava. Moradora de Heliópolis, ela entrou no Baccarelli, aos 16 anos, em 2007. "Descobri a música clássica, de concerto, que era algo que não era do meu convívio", diz ela, que escolheu o contrabaixo como instrumento e passou pelas orquestra juvenil e pela Sinfônica de Heliópolis.

Atualmente, Jéssica toca na Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia (OSUFBA) e é chefe de naipe de contrabaixo da Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA). "Estou muito emocionada em ver o caminho que o Baccarelli trilhou até esse teatro. É gratificante ver a transformação da comunidade", diz, sem esconder que espera um convite para também tocar no novo palco.

A contrabaixista faz questão de salientar que, além da vida profissional, sua vida pessoal também "nasceu no Baccarelli". Foi no Instituto que ela conheceu seu marido, Leandro Tigrão, com quem está casada há 10 anos. Tigrão tocava flauta na Heliópolis e, atualmente, faz parte da turnê Phonica, de Marisa Monte. O filho do casal, Murilo, de 10 anos, segue os passos do pai e já toca choro.

O Teatro Baccarelli terá um espaço para vendas presenciais - os ingressos serão vendidos preferencialmente por esse meio, antes de serem disponibilizados na internet. Por duas questões: primeiro, para dar oportunidade de compras aos moradores. Segundo, para justamente convidar o público a ir até Heliópolis, quebrando as barreiras existentes dentro da cidade de São Paulo.

Para Jéssica, não será difícil convencer quem é de fora de Heliópolis a frequentar o teatro. "Nem precisa [convencer]. Isso aqui é tão incrível! Só de anunciar que agora há um teatro como esse, a galera vai querer vir, com certeza", diz a contrabaixista.

Ventureli diz que, mais que vontade, o público precisa exercer a humildade de assistir a um espetáculo dentro da favela. "A verdadeira inclusão social não é levar os moradores das favelas para fora delas, É trazer as pessoas que têm os poderes político, econômico e pensante para dentro da favela, para conhecer uma realidade na qual eles possam agir e transformar. Vamos trabalhar muito para que pessoas de outras regiões percam o medo e vençam o preconceito", finaliza.

Inauguração do Teatro Baccarelli

Terça, 25

. 9h - Inauguração oficial com a presença de autoridades e apresentação do Coral Jovem e Orquestra Sinfônica Heliópolis

. 20h - Concerto oficial de inauguração com Orquestra Sinfônica Heliópolis sob regência do maestro Isaac Karabtchevsky

Primeiro show

Quarta, 26

20h Show em celebração à MPB com Péricles, Simoninha, Zé Ricardo e Orquestra

Onde fica o Teatro Baccarelli

Estrada das Lágrimas, 2317 - Ipiranga, São Paulo - SP

Nesta segunda-feira, 24, vai ao ar o The Kelly Clarkson Show que terá como convidado Wagner Moura. A gravação do talk show da cantora Kelly Clarkson com o ator brasileiro foi feita na última quarta-feira, 20, e serve como divulgação de O Agente Secreto nos Estados Unidos, que estreia nos cinemas americanos nesta semana.

Em vídeo prévio divulgado pelas redes sociais do programa, Wagner dança um pouco de samba e ouve um elogio da apresentadora: "Eu nunca vou parecer tão sexy assim!", disse ela.

Cotado para o Oscar, ele ainda comentou sobre a demora para voltar a gravar um filme em português, citando o governo de Jair Bolsonaro como um dos motivos. Além disso, falou sobre a banda Sua Mãe, da qual ele faz parte, e citou Roberto Carlos como influência para o grupo.

Esta não é a primeira vez do ator baiano participa do talk show. Ele também foi entrevistado por Kelly no ano passado, quando divulgava Guerra Civil, produção na qual contracenou com Kirsten Dunst.

Escrito por Marcílio França Castro e publicado em março de 2024 pela Companhia das Letras, O Último dos Copistas venceu a categoria de Melhor Romance de Estreia no Prêmio São Paulo de Literatura 2025, entregue na noite desta segunda-feira, 24.

Neste romance híbrido que mescla ensaio e literatura, o leitor se depara com a história de Ângelo Vergécio, um copista do século 16 cuja caligrafia deu origem à fonte Garamond. O livro é descrito como "uma janela para compreender o contemporâneo".

O mineiro Marcílio França Castro, de 58 anos, estreante no gênero de romance, já publicou três livros de contos: A Casa dos Outros, Breve Cartografia de Lugares sem Nenhum Interesse e Histórias Naturais.

Confira a seguir um trecho de 'O Último dos Copistas'

Você que começa agora a seguir estas linhas, que está esticado em um sofá ou sentado à sua mesa de trabalho, ou quem sabe dentro de um ônibus, no banco da janela, com o braço encolhido para não incomodar o passageiro ao lado, você que é leitor assíduo desta revista, ou nem tanto, mas reconhece de longe seu formato extravagante e não dispensa manuseá-la em papel, ou, ao contrário, prefere a tela do celular ou a de um computador, mesmo sabendo que os artigos aqui costumam ser extensos e podem cansar a vista, você, que às vezes fica indeciso sobre a natureza do que está lendo, e se pergunta: afinal, isso é verdade ou invenção, ou apenas uma reportagem esquisita, carregada de ambiguidade, e é essa dúvida que o instiga ainda mais a continuar a leitura; você que vai aos poucos sendo arrastado por estas palavras, e já não se incomoda com o ruído a sua volta, você, mesmo sendo um leitor excêntrico ou disperso, mesmo tendo que parar para limpar o café que acabou de derramar sobre a folha ou expulsar o mosquito que insiste em pousar no meio da página, provavelmente não vai pensar em interromper o percurso, o vaivém folgado dos olhos, para ir a uma gaveta, tirar lá do fundo aquela lupa arranhada e, por distração ou cisma, passar a examinar cuidadosamente, em tamanho ampliado, o desenho que têm as letras aqui impressas, se são duras ou suaves, se fazem curva ou são retas, se permitem respirar, se o miolo é aberto, se o remate é pontudo. Você pode, no máximo, talvez, sentir de modo inconsciente a leveza do tipo, o conforto óptico que ele produz, mas não vai reparar, por exemplo, na cabeça abaulada deste "t" ou na espora arredondada ao pé deste "a". Você continua a ler, consegue até detectar certas minúcias, mas dificilmente saberá que estes caracteres, o modo ventilado com que sulcam o papel, carregam uma herança corporal, longínqua - o traço, a bico de pena e em grego, de um copista que viveu em Paris no século XVI. Esse copista tardio chamava- -se Ângelo Vergécio, provinha de Creta e, por seu talento, tornou-se escrivão oficial, em língua grega, de Francisco I, o rei francês. Foi a elegância de sua caligrafia - aerada, limpa, veloz - que, há quase quinhentos anos, por uma espécie de contaminação, ou afeto tipográfico talvez, acabou impregnando a fonte romana que deu origem a esta Garamond.

Os manuscritos produzidos por Ângelo Vergécio - Ange Vergèce, para os franceses, Angelos Bergikios, para os gregos - e a cultura que gravita em torno deles são o objeto da exposição que acontece até o fim da primavera europeia na Galeria 1 da unidade François Mitterrand da Biblioteca Nacional da França, em Paris. Le Dernier des Copistes [O Último dos Copistas], como a mostra é chamada, reúne cerca de trinta manuscritos da lavra de Vergécio, copiados entre 1535, quando ele vivia em Veneza, e 1568, ano anterior ao de sua morte, em Paris. Há também cartas, livros impressos, alguns mapas e objetos, além de três ou quatro manuscritos de copistas que trabalharam com ele. A maioria dos exemplares pertence ao acervo de manuscritos antigos da Biblioteca Nacional, guardados ordinariamente em sua sede velha, a da rua Richelieu (a poucas quadras do Louvre), mas há também os que vieram por cortesia de outras instituições, como as bibliotecas Bodleiana, em Oxford, do Escorial, na Espanha, e a Biblioteca Estatal de Berlim. De fora da Europa, conseguiram trazer uma peça importante de Harvard. Pouco mais de cem manuscritos copiados por Vergécio sobreviveram até nós, a maioria em papel - vários danificados, outros sem autógrafo, alguns ricamente encadernados. Não é improvável, porém, que, escarafunchando por aí coleções ou estantes empoeiradas, ainda se possa descobrir mais algum.

Do ponto de vista conceitual, a mostra poderia ser entendida como uma continuação de dois outros eventos recentes: o conjunto de homenagens ao tipógrafo Claude Garamond promovidas pelo governo francês em 2011, em razão dos quatrocentos e cinquenta anos de sua morte, e a dupla exposição, organizada em 2014 e 2015 pela própria Biblioteca Nacional, em honra a Francisco I - uma, à figura do rei, a outra, a seus livros. Segundo a curadora, o arranjo não foi calculado, e a escolha de Vergécio, um migrante plebeu na corte francesa, a princípio sem vínculo identitário com o país, não teria nada a ver, ao contrário das anteriores, com o intuito de celebrar personalidades nacionais. Entretanto, quando vejo essa conjunção de personagens tão próximos - Francisco I, Garamond e Vergécio -, os três fincados na mesma cena renascentista e convi vendo em torno dos livros, não posso deixar de pensar numa espécie de trilogia, e no seu propósito subjacente, ainda que involuntário, de interrogar a passagem do mundo manuscrito para o impresso. Mais que isso, me pergunto se não haveria aí o sintoma de uma força mais abrangente, a atração silenciosa que devemos ter por esse século que parece acenar para o nosso, como se sua curiosidade e mobilidade, e seu apetite enciclopédico, fossem uma lembrança de algo que se vive agora, como se, na rede de símbolos e palavras que fazia girar o imaginário daquela época, conectando, por exemplo, um pássaro a uma pedra, a pedra a um espírito, o espírito a uma estrela, se pudesse de repente atar um fio da nossa própria rede, sem dúvida mais promíscua e difusa mas que também navega, já talvez à deriva, entre pedras e estrelas, entre cristais e bichos, humanos e máquinas. Afinal, não é fato que, sedados pela tecnologia e suas armadilhas, já não discernimos mais, em uma confusão maior que a dos antigos, entre documento e fábula, entre ciência, religião e magia, astros e signos, animais e quimeras? Não seriam os fantasmas do século XVI - copistas atrapalhados com uma pena nas mãos - parentes próximos desses que agora rondam a nós, leitores assustados com o fim da página e do papel?

Se não estivesse em reforma, o prédio da rua Richelieu, com seu ar amadeirado e os afrescos italianos, seria talvez o lugar mais indicado para a exposição - a maioria das peças nem precisaria ser deslocada. A opção pela Biblioteca François Mitterrand, entretanto, situada do outro lado da cidade, e que de cara confronta o visitante com um cenário futurista, parece ter acrescentado ao programa, meio por acidente, um prólogo inesperado e destoante.

Mesmo em Paris há dois meses, eu ainda não tinha estado lá. Saindo da praça da Itália, você pode descer a pé até quase o Sena; duas ou três quadras à direita, logo surge a esplanada. Um pátio vasto, retangular, com um prédio em cada ponta, o jardim rebaixado no meio. O vento sopra de todos os lados; há algo de sinistro naquela vaguidão. O único indício de livros parece ser a própria geometria dos prédios, dobrados em L, como um códice aberto. Tabuinhas de madeira cobrem o chão inteiro. A leste e a oeste, há uns painéis de vidro atravessados, escuros; você imagina que, se tateá-los, se tocar no bloco certo, vai descobrir uma parede falsa que te dará passagem para o interior.

O Último dos Copistas

Autor: Marcílio França Castro

Editora: Companhia das Letras (208 págs.; R$ 44 e R$ 19 o e-book)