Não é exagero dizer que o Brasil parou para acompanhar os desdobramentos do sequestro de Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos, por seu ex-namorado, Lindemberg Fernandes Alves, na época com 22. A jovem foi mantida em cárcere privado no apartamento em que morava com a família, em Santo André, na Grande São Paulo, de 13 a 18 de outubro de 2008. O sequestro terminou de forma trágica: Eloá morreu no hospital, após ter sido baleada na cabeça, e sua amiga, Nayara Rodrigues, foi atingida por um tiro no rosto.
Ainda há o que ser desdobrado sobre o tema. Ao menos é o que acreditam Cris Ghattas e Veronica Stumpf, diretora e produtora do documentário Caso Eloá: Refém ao Vivo, que estreou no streaming da Netflix.
O projeto ficou em desenvolvimento por dois anos, a partir de uma ideia original do roteirista Ricky Hiraoka. Em 1h25, o filme revisita os principais momentos do sequestro, com análises de alguns dos envolvidos: a família de Eloá, alguns agentes da polícia que participaram das negociações e profissionais da imprensa que entrevistaram Lindemberg para a televisão.
"Eloá foi assassinada em um momento em que o Brasil ainda não reconhecia o feminicídio. Lindemberg não foi julgado como feminicida", pontua Stumpf, em entrevista ao Estadão. "Revisitar essa história deu voz para essa menina que foi tão negligenciada, de várias formas, durante todo o processo: pela polícia, pela imprensa e pela própria sociedade que viu ali um grande reality show."
"Quando comecei a revisitar as informações do caso, em 2023, a gente estava em um recorde de casos de feminicídio no Brasil e hoje continuamos com o mesmo dado", complementa Cris Ghattas.
De acordo com o Mapa da Segurança Pública de 2025, o Brasil faz quatro vítimas de feminicídio por dia.
"Como documentarista, acredito que é por meio do impacto e da emoção que a gente tem oportunidade de se rever como sociedade", segue a diretora. "É a história de uma garota que lutou pela vida até o último segundo, pelo seu direito de dizer não. Mas também é uma história com a camada midiática, a camada governamental, de preparo da polícia. É a nossa oportunidade de, com distanciamento, rever nossos princípios e limites."
Embora repasse as 100 horas de sequestro, e mergulhe nos altos e baixos das negociações conduzidas pela polícia - inclusive pelo momento em que, por um erro, Nayara retorna ao cativeiro -, o documentário também se propõe a falar um pouco mais sobre quem era Eloá. Trechos inéditos de seu diário ajudam a compor a figura da adolescente que temia pela segurança, pedia ajuda a Deus e também fazia planos para o futuro - que envolviam se casar com Lindemberg.
Complexidade
"Nós queríamos evitar o exagero de atenção ao assassino", pontua a diretora. "Tentamos trazer uma amplitude de visões, porque é uma história complexa que precisa disso. Estamos, sim, contando a história de um crime, mas de forma humana. A gente não precisa da parte sádica."
Para Veronica, responsável pelas negociações para conseguir os materiais de arquivo com a família, faltava um olhar para a dor da saudade que permanece. "Eu sempre achei que a família é muito sentida pela forma como o caso foi tratado", opina. "Essa menina praticamente foi culpada pela própria morte. Meu compromisso com a família de Eloá sempre foi o de dar voz a ela."
Estrela do momento
O momento em que Sonia Abrão faz uma entrevista ao vivo com Lindemberg no programa A Tarde É Sua, da RedeTV!, é considerado crucial para se entender a mudança nas negociações do sequestrador com a polícia. O contato direto da imprensa com o criminoso o teria feito se sentir "a estrela" do momento.
Lindemberg passou a ignorar os contatos das autoridades e a falar apenas por meio de programas de televisão. As negociações, que já não avançavam, ficaram ainda mais estagnadas.
Cris Ghattas e Veronica Stumpf analisam o documentário como uma oportunidade de observar o quanto a cobertura midiática e o entendimento público se transformaram a partir do caso Eloá.
Para a produtora, houve uma curva de aprendizado em relação à imprensa, mas ela também pondera que as coberturas com viés considerado sensacionalista não existem em um vácuo: "É impossível falar disso sem falar da sociedade. Não haveria imprensa sensacionalista se não houvesse um público que consome. O objetivo do documentário é fazer a gente rever por que se consome tanto isso de forma tão irresponsável e sem autocrítica. Seria muito pretensioso da minha parte achar que um documentário pode resolver todos os problemas, mas eu espero contribuir um pouco para essa reflexão", torce.
Para a diretora, no entanto, o grande legado está regulamentado; hoje, a atuação da imprensa em casos de sequestro em andamento é limitada para não prejudicar o curso das negociações. "Não adianta a gente só apontar para um lado, todos nós aprendemos. Durante as entrevistas, tivemos muitos momentos de autocrítica, de revelações que ficaram indigestas. A imprensa questionou o seu papel. As pessoas têm direito à informação, mas qual é o limite disso?", reflete Ghattas.
"Para mim, o que mais chocou foi ver que, depois de tantos anos, a sociedade ainda continua culpando a mulher pela própria morte e pela violência que ela sofre", pontua Stumpf. "Ao revisitar o caso Eloá, ainda escutamos, algumas vezes de maneira sutil, 'mas aquela menina tão jovem já namorava...'. Para mim, é muito triste identificar que nós mulheres ainda somos culpadas pelo nosso próprio infortúnio", finaliza.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.