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Confinados em um pátio da penitenciária 'Ferrugem', em Sinop - município com 200 mil habitantes a 500 quilômetros de Cuiabá -, e acuados por cães ferozes e policiais armados com pistolas 9 mm, detentos relatam conviver diariamente com humilhações, espancamentos e torturas. As denúncias de abusos atribuídos à força de elite da polícia penal de Mato Grosso, a SOE (Serviço de Operações Especializadas), constam de relatório do Tribunal de Justiça do Estado, que fez uma inspeção na unidade prisional em outubro.
O documento de 240 páginas, ao qual o Estadão teve acesso, descreve violências atribuídas a policiais penais de 'Ferrugem', que mantém 1.595 prisioneiros sob o regime do medo. O presídio leva esse nome por sua estrutura precária e métodos medievais, segundo relatos de testemunhas de agressões.
Em mais de uma ocasião, dizem os depoimentos, os agentes teriam demonstrado prazer e regozijo ao submeter detentos a episódios de tortura e humilhação.
Segundo os prisioneiros, a corporação atua com o aval da direção do presídio e tem a convicção de que, dentro da prisão, "ordens externas não têm eficácia".
O diretor da unidade, Adalberto Dias de Oliveira, o subdiretor Antônio Carlos Negreiros do Santos e o policial Paulo César Araújo Costa - grupo que, segundo o Tribunal de Justiça de Mato Grosso, orquestrava as torturas no presídio -, foram afastados das funções na penitenciária por um prazo inicial de 180 dias. Mesmo fora de seus cargos, eles continuam recebendo remuneração.
O Estadão busca contato com os servidores afastados da penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira - a 'Ferrugem'. O espaço está aberto.
'Procedimento chantilly'
O relatório indica que uma tática predileta e amplamente utilizada pelos agentes penitenciários era o 'procedimento chantilly' - spray de pimenta aplicado nas mãos do policial, que em seguida esfregava o produto no rosto e nos olhos dos presos.
A ordem que afastou os diretores - expedida no dia 19 passado pelo desembargador Orlando de Almeida Perri, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso - cita que o 'procedimento chantilly' consiste em um "método de tortura com agente químico" e que a prática é adotada no presídio há pelo menos cinco anos.
"O policial penal aciona o spray de pimenta na própria mão, gerando uma espuma viscosa com o produto químico; em seguida, esfrega essa espuma diretamente nos olhos do recluso, geralmente quando este se encontra em posição de submissão", anota o relatório do tribunal, anexado à decisão do desembargador que rejeitou o pedido de habeas corpus de um dos detentos após inspeções realizadas na unidade.
"A vítima fica sem qualquer possibilidade de defesa, higienização ou atendimento médico imediato", segue o documento. "Os policiais entram no Raio (conjunto de celas) sem motivo e fazem procedimentos fora do horário normal, sem motivo algum."
A inspeção conduzida pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional e Socioeducativo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso detalha que o 'procedimento chantilly' cria um "ambiente de risco gravíssimo pela aspiração concentrada do produto químico em espaço fechado, superaquecido e sem aeração adequada".
O local enclausurado que o Tribunal se refere é conhecido como "latão" dentro da penitenciária - uma cela superlotada que concentra as mais variadas práticas de tortura, segundo o relatório.
"As imagens revelam uma forma particularmente cruel de tortura constante dos relatos dos presos e imagens: alguns policiais disparam contra as pessoas privadas de liberdade através da "boqueta" do latão das celas. O modus operandi consiste no deslocamento do policial até o cubículo, a abertura da "boqueta" (abertura utilizada para a entrega de alimentação) e a realização de disparos indiscriminados (um, dois ou até três) para o interior da cela, que se encontrava superlotada."
"Em alguns momentos, dois policiais agem simultaneamente, efetuando disparos nas "boquetas" de celas vizinhas, caracterizando uma agressão covarde e deliberada contra indivíduos confinados e sem possibilidade de defesa", descreve o documento.
Indagada pela reportagem sobre as denúncias, a Secretaria de Estado de Justiça de Mato Grosso disse que instaurou procedimento administrativo para "examinar de forma minuciosa e imparcial os fatos, que ocorreram durante um início de motim por parte dos reeducandos, que tentaram, na ocasião, destruir as celas da carceragem e avançar contra os policiais penais". (leia a íntegra da manifestação abaixo)
'Uso intenso de chantilly'
Em depoimento ao grupo de fiscalização do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, o detento Diogo Henrique Damasceno Moraes contou que no dia 26 de outubro, após a janta, percebeu que um policial entrou no Raio 7 da cadeia para uma verificação de rotina. Segundo ele, o policial estava embriagado.
Durante a inspeção, agentes teriam 'sequestrado' um detento identificado como Hernandez, o que provocou revolta da carceragem, que exigia a devolução do preso à cela, momento em que um dos policiais efetuou um disparo de calibre 12, sem registro de feridos, segundo o relatório.
"Após isso, os presos 'chacoalharam' o Raio pedindo para a polícia parar de 'zoar'", assinala o Tribunal.
"Em retaliação, todos os detentos do Raio foram levados para a quadra. Lá, os policiais começaram a zombar deles com a arma calibre 12 e a soltar cachorros, o que resultou em mordidas em dois ou três rapazes", relatou o detento.
Diogo disse que o primeiro contato com o 'procedimento chantilly' foi em 2024, durante uma tentativa de fuga empreendida por outros detentos. Ele narrou que "estava na cela e foi espancado". Que sofreu com o uso intenso de chantilly (spray de pimenta) e que eles sempre realizam tortura psicológica", destaca o depoimento.
Outros oito detentos ouvidos pelo grupo de fiscalização do Tribunal afirmaram que o 'chantilly' é expediente recorrente na penitenciária.
Para a Justiça de Mato Grosso, "os relatos dos detentos, corroborados pelas imagens das câmeras, evidenciam que indivíduos inescrupulosos estão utilizando o arsenal estatal para a prática de crimes de tortura".
No entendimento da Corte, "os elementos colhidos na inspeção de 2025 evidenciam que a forma de atuação da unidade de Sinop projeta, perante presos e familiares, a imagem de um poder paralelo que se sobrepõe às decisões do Tribunal de Justiça e do GMF - Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional."
COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE ESTADO DE JUSTIÇA DE MATO GROSSO
A Secretaria de Estado de Justiça (Sejus) recebeu no dia 12 de dezembro o relatório de inspeção realizado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) na Penitenciária Dr. Osvaldo Florentino Leite Ferreira, em Sinop.
Paralelamente à referida inspeção, a Sejus instaurou procedimento administrativo de apuração, conduzido pela Corregedoria-Geral da instituição, com a finalidade de examinar de forma minuciosa e imparcial os fatos, que ocorreram durante um início de motim por parte dos reeducandos, que tentaram, na ocasião, destruir as celas da carceragem e avançar contra os policiais penais.
Esta Secretaria ressalta ainda que, durante o ano de 2025, não houve denúncia formal, em nenhum órgão fiscalizador, sobre suposta tortura na referida penitenciária.
A Sejus reitera ainda que não coaduna com nenhum tipo de abuso ou prática criminosa e, caso seja confirmado, serão adotadas as medidas cabíveis para a devida responsabilização.
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