A Defensoria Pública do Estado de São Paulo recomendou à Prefeitura da capital nesta quarta-feira, 15, a retirada de gradis e demais barreiras físicas colocados no trecho da Rua dos Protestantes, no centro, ocupado pelo fluxo da Cracolândia, nome dado à aglomeração de usuários de droga em cenas de uso.
Procurada, a gestão municipal ainda não se manifestou sobre a recomendação. Mais cedo, a administração havia justificado a medida com o argumento de dar mais proteção aos usuários de drogas (leia mais abaixo).
Em ofício recomendatório, a Defensoria afirma que as instalações "impedem a livre circulação de pessoas em vias e espaços públicos sem qualquer justificativa legal, já que eles limitam de diferentes formas o uso do espaço público, a livre circulação das pessoas, o acesso à água potável e a banheiros".
Como mostrou o Estadão mais cedo, um muro construído pela Prefeitura potencializou as críticas sobre a forma como a gestão Ricardo Nunes (MDB) trata o desafio da concentração de dependentes químicos na região. A reportagem foi citada pela Defensoria.
Mais cedo, a gestão municipal afirmou que o muro de concreto substituiu tapumes de metal instalados anteriormente para fechamento da área pública. "A troca dele foi realizada para proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade, além de moradores e pedestres, e não para 'confinamento'", diz.
A recomendação da Defensoria, feita por meio do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, afirma que as instalações representam "arquitetura hostil", com "finalidade espúria de afastar a população em situação de rua". O documento é endereçado a Nunes, ao subprefeito da Sé, Coronel Álvaro Camilo, e ao secretário municipal de Segurança Urbana, Orlando Morando.
Segundo o órgão, a estratégia de adotar gradis e barreiras físicas "já foi adotada em outras oportunidades e não há qualquer comprovação de sua eficiência para atingir os objetivos declarados (pela Prefeitura) de melhor atender os usuários". A Defensoria cita que há também "desproporcionalidade da medida comparada a outras que possam ser adotadas pela Municipalidade".
Diante disso, a Defensoria recomendou à Prefeitura a retirada dos gradis e barreiras físicas instaladas na região. O pedido abarcaria inclusive o muro construído no cruzamento da Rua dos Protestantes com a General Couto de Magalhães, que tem 40 metros de comprimento por 2,5 metros de altura.
No mesmo pedido, o órgão requisitou cópia do procedimento que culminou no ato administrativo executivo de colocação de gradis/muros na Cracolândia, com objetivo "verificar sua legalidade e motivação, assim como sejam respondidas formalmente algumas indagações". Questionou também, entre outros pontos, se foi verificado aumento do número de abordagens e encaminhamentos realizados após a instalação dos gradis, por exemplo.
Em relatório produzido pela Defensoria em junho do ano passado, logo após a repercussão da instalação de gradis na região, o órgão chegou a afirmar que os gradis formam um "curral' humano". "Não tem água, não tem comida, não tem banheiro, a gente não pode fazer nada, fica ali trancado sob a opressão", aponta trecho de depoimento de um usuário citado no documento.
'Foi mais para esconder o fluxo (de usuários de drogas) dos carros'
Na avaliação de comerciantes da região de Santa Ifigênia, a construção do muro, concluída no ano passado, teve efeito apenas "estético". "Se esse muro mudou alguma coisa por aqui, foi mais para esconder o fluxo (de usuários de drogas) dos carros que passam pela (Rua) General Couto de Magalhães", disse o lojista Antônio Francisco da Costa, de 72 anos.
O comerciante conta que, quando o fluxo se estabeleceu por lá, há quase dois anos, havia mais casos de quebra-vidro que roubavam motoristas. "Não necessariamente eram os usuários, mas bandidos que se escondiam dentro do fluxo", disse. Uma lojista relatou que houve 16 casos em um só dia.
Agora, a percepção é que as ocorrências diminuíram, mas Antônio atribui isso a outra medida. "Parece que há gente saindo por essa câmera de reconhecimento facial que foi instalada de frente para a Cracolândia", disse. "Mesmo que não estejam devendo nada na Justiça, é algo que gera uma desconfiança."
Segundo comerciantes, a Cracolândia hoje está até mais esvaziada do que há alguns meses, com pequenos grupos espalhados pela região central. Dados da Prefeitura apontam que, em média, tem havido cerca de 139 integrantes do fluxo durante o período vespertino em janeiro. De noite, são cerca de 240 pessoas. No mesmo recorte do ano passado, eram 524 pessoas no período diurno e 544, no noturno.
O Estadão percorreu o entorno do fluxo na manhã desta quarta e encontrou o local, de fato, mais esvaziado do que em outras ocasiões. Lojistas ouvidos pela reportagem afirmam que houve queda expressiva na clientela desde que a Cracolândia se fixou na Rua dos Protestantes. Há comerciantes que relatam diminuição de até 90% nas vendas. "Mesmo que tenha menos usuários, os clientes não voltam mais", disse uma lojista.
Com uma bicicletaria aberta há 31 anos na região, Edna Pereira, de 54 anos, aponta com os dedos os vários comércios que fecharam recentemente. "Aqui era uma loja de impressoras, ali, uma de peças de eletrônicos. Na esquina, de sapatos", disse. "Antes deixavam o número de celular para a gente avisar quando um ponto vagasse. Agora ninguém quer saber mais daqui."
O irmão dela, Sidney Pereira, de 58 anos, afirma que presenciou a ação de um quebra-vidro no região. "Foi muito rápido. Num piscar de olhos, levou o celular do motorista e já entrou para dentro do fluxo para se esconder", disse. A bicicletaria da família passou a fechar mais cedo, às 17h, por causa da insegurança, em movimento replicado por outros comércios.
Entidades criticam construção de muro: 'Não é solução'
Entidades que atuam no local alegam que a obra teve como objetivo isolar os usuários e dificultar os trabalhos de assistência. O padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, descreve a construção como o "muro da vergonha". "Em vez criar portas para sair, portas para entrar, pontes para mudar, criam-se muros para segregar. Isso não é solução", disse, nas redes sociais.
A ONG Craco Resiste também criticou a medida. "O espaço que foi delimitado para que as pessoas fiquem concentradas não conta com nenhum banheiro ou ponto de água potável próximo. Durante as revistas coletivas são tomados diversos objetos pessoais dessa população, sem nenhum critério objetivo claro, enquanto os guardas proferem xingamentos contra as pessoas", afirma, em nota.
Segundo o psiquiatra Flavio Falcone, que trabalha com pessoas em situação de rua desde 2007 e atua na Cracolândia há mais de uma década, o efeito da construção do muro foi espalhar ainda mais os usuários. "Sou morador do centro, moro na (Avenida) Duque de Caxias, e o que vejo, principalmente de dezembro para cá, é que o fluxo está completamente espalhado."
Falcone afirma que a nova configuração tem dificultado inclusive o tratamento dos usuários. "Não consigo entender a relação do muro com dar mais segurança às equipes e melhorar o atendimento. As equipes dos consultórios de rua não entram no fluxo", disse.
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) afirmou que a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital vai apurar o caso.
A Prefeitura disse mais cedo, em nota, que os tapumes eram quebrados com frequência, oferecendo risco de ferimentos para as pessoas. Por isso, foram trocados por alvenaria.
"O trecho ao lado da Rua Couto de Magalhães foi mantido para proteção das mesmas em decorrência do fluxo de veículos na via e circulação nas calçadas." A gestão municipal também afirma que, além da substituição dos tapumes que havia no local anteriormente pelo muro, fez melhorias no piso da área ocupada para as pessoas em situação de vulnerabilidade.