Uma soldado da Polícia Militar do Ceará (PM-CE) foi punida com dois dias de prisão administrativa por causa de dois vídeos postados nas redes sociais em abril e junho de 2023. Em um deles, Mayara Kelly Gomes Silva aparece lavando uma viatura da corporação. Em outro, ensina como aplicar um torniquete (dispositivo aplicado em membros lesionados para conter hemorragias).
A defesa da soldado disse ter recebido com surpresa a decisão, classificada como um "equívoco", e que recorreu da punição. Aponta ainda que o episódio representa "quebra da isonomia", uma vez que, argumenta, policiais do sexo masculino já fizeram vídeos similares e, mesmo assim, não teriam sido punidos. Já a PM do Ceará afirma que a sindicância permitiu ampla defesa.
Na sindicância, obtida pelo Estadão, o subcomando da PM-CE afirma "que, embora o princípio da liberdade de expressão assegure aos indivíduos o direito de manterem perfis pessoais em redes sociais, a utilização do fardamento oficial, bem como a exposição de viaturas e demais elementos característicos da atividade policial militar, constitui clara representação da instituição Polícia Militar do Ceará (PMCE)".
A corporação acrescenta que esses símbolos institucionais não devem ser utilizados "em publicações de caráter particular sem a devida autorização, sob pena de afetar a necessária disciplina e o decoro que regem a atividade militar". A sindicância foi concluída no último dia 26.
Em ambas gravações, publicados em uma conta pessoal da soldado da PM-CE no Instagram, Mayara Kelly, da 1ª companhia do 11º Batalhão de Polícia Militar, usa farda da PM e aparece nas dependências do quartel. A soldado conta hoje com 41 mil seguidores na rede social.
'Intenção de motivar outras mulheres'
Mayara Kelly afirmou, durante a sindicância, que "fez os vídeos com a intenção de motivar outras mulheres que querem trabalhar na polícia", que sua rede social não é monetizada e que já havia sido chamada ao comando da corporação para falar sobre publicações em sua rede social.
No vídeo em que aparece lavando a viatura, por exemplo, ela afirma que "algumas pessoas acham que a mulher na polícia só trabalha no administrativo", mas acrescenta que elas exercem "inúmeras funções que até anos atrás poderiam ser consideradas apenas coisas para homem".
Para o subcomando, a própria policial reconheceu "já ter sido anteriormente orientada pelo Comando da PM-CE acerca do teor de suas publicações em rede social, o que denota ciência prévia sobre a inadequação de tal conduta, sem que tenha havido alteração no comportamento posteriormente".
O documento destaca que, apesar da decisão, Mayara Kelly tem sido elogiada ao longo dos anos por bons serviços prestados. Ela ingressou na corporação em outubro de 2017, na carreira de praça. Aponta também que, em sua trajetória funcional, não há registros de infrações disciplinares relevantes que possam prejudicar sua conduta profissional, além de uma repreensão em 2024.
Procurada pelo Estadão, o advogado Francisco Sabino, que representa Mayara Kelly Gomes, afirmou que "recebeu com surpresa a decisão de punição administrativa" de dois dias de permanência disciplinar, "quando a militar deverá ficar aquartelada, distante de sua família e de dois filhos menores (10 meses e 06 anos de idade) que necessitam de seus cuidados".
Segundo ele, o entendimento de que a policial teria transgredido normas disciplinares configura-se como "um equívoco interpretativo e excesso de rigor".
"Destaque que o vídeo em que a policial ensina seus seguidores como fazer um torniquete, na verdade, trata-se de um vídeo de utilidade pública, uma vez que o intuito é meramente informativo, educativo e partiu de vivência própria da militar, que tem um irmão policial militar, que foi atingido por disparo de arma de fogo quando atuava contra o crime organizado", afirma.
Na avaliação de Sabino, "os conteúdos divulgados relatam a rotina profissional da militar, não possuem natureza técnica ou administrativa sensível, tampouco causaram prejuízo ou possuem potencial significativo para causar desprestígio, prejuízo à corporação".
"A defesa reafirma a inocência da policial militar Mayara Kelly Gomes, e no dia de ontem (8) apresentou recurso administrativo ao Comando da corporação, solicitando a anulação da punição, requerendo daquele comando senso de Justiça", afirma o advogado.
Em nota, o Comando da Polícia Militar do Ceará afirma que a sindicância em questão, que culminou em sanção disciplinar da soldado, "contou com ampla defesa e contraditório, e ainda possui prazo para recurso correndo, tudo previsto no Código Disciplinar".
"A PM-CE reafirma seu compromisso com a disciplina, a hierarquia, pilares básicos dessa corporação que completará 190 anos mês que vem, além do compromisso com a ética profissional e o respeito às normas institucionais e militares, principalmente no que tange aos dados de seus componentes, que trouxeram a corporação até a idade que tem", diz o Comando.