Manual da intolerância: livro do século 15 foi escrito para perseguir diferentes

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A Rosa dos Tempos, selo da Editora Record, publicou há pouco O Martelo das Feiticeiras. O livro de Heinrich Kramer e James Sprenger foi publicado no século 15 como um manual para identificação de bruxas durante a Inquisição. A edição atual foi organizada por Rose Marie Muraro, com tradução de Paulo Fróes e revisão técnica de Renate Gierus - o prefácio é de Carlos Amadeu Byington. A chamada patrona do feminismo no Brasil faz uma bela introdução histórica. Contextualiza a questão da mulher, explicando como o machismo se constituiu ao longo do tempo, superando até mesmo uma condição natural de igualdade de posições entre os gêneros. Isto é, teria sido a força derivada da ação opressora construída de modo unilateral pelo gênero masculino que resultou no machismo. A ênfase neste ponto se dá pelo óbvio: a esmagadora maioria das vítimas da Inquisição foram mulheres.

Enquanto documento oficial, podemos tomar o livro como um testemunho do poder ideológico sobre quaisquer outras fontes de conhecimento. Nele notamos a resposta da dominação católica à ameaça sofrida por sua hegemonia, suscitada sobretudo pelas descobertas científicas de então. Kramer e Sprenger eram inquisidores. Entendiam que as bruxas estavam em toda parte, assumindo as mais diversas formas, incorporadas principalmente nas mulheres. Os encantamentos poderiam ser grotescos - como a supressão de membros do próprio corpo, por exemplo - ou até sutis, como sonhos e falta de desejo para a procriação.

É curioso pensar sobre a crença de pessoas daquele tempo nas bruxarias. Até mais ou menos o século 15, a Bíblia era hegemônica enquanto fonte de informação - eis um mundo segundo preceitos católicos. O ser humano, obra divina, deveria ser grato por sua criação, retribuindo com ações em vida em nome da eternidade.

Contudo, diversas foram as transformações na percepção sobre o mundo. Questionava-se a forma geométrica da Terra, bem como sua posição no centro do universo, abalando a crença da centralidade da criação divina. Homens comuns, cientistas, como Galileu, Kepler, Copérnico, entre outros, suscitavam dúvidas sobre a Criação. Abria-se precedentes para que se admitissem a existência de muito mais coisas do que realmente se sabia.

Em uma viagem descobria-se uma nova forma de vida não encontrada na Bíblia, não pertencente à linhagem adâmica, os indígenas das Américas. Jogar por terra uma verdade do livro sagrado do catolicismo dessa maneira tinha consequências a incidirem na fé católica como um todo.

A recém desenvolvida imprensa permitia a reprodução mais fácil da Bíblia, bem como estimulava a sua leitura e tradução do latim para outras línguas - a primeira gramática do Ocidente, a de Nebrija, foi criada em 1492, na Espanha. Por conseguinte, tornavam-se comuns as leituras no ambiente privado, sem o intermédio de sacerdotes, bem como interpretações unilaterais sobre a palavra de Deus. A Reforma Protestante iniciada com Lutero vinha no esteio desse movimento, valorizando a fé exercida individualmente segundo o princípio do Deus absconditus.

Diversos outros poderiam ser os fatos a contextualizarem os séculos 15 e 16. Todavia, aqui, o mais importante é a noção da lógica de inquietude quanto aos princípios católicos. A sociedade cristã estava inquieta e a Igreja tentava responder a tantos anseios e dúvidas, com toda e qualquer manifestação contrária aos preceitos bíblicos passando a ser vistas como desvirtuamento, heresia.

A Inquisição foi uma atitude de vigia quanto ao desvirtuamento de uma doutrina, reforçando, ao mesmo tempo, preceitos centrais ao catolicismo. Portanto, ela, que sempre teve uma gigantesca estrutura moral, se esforça por assegurá-la, criando, de cima para baixo, violentamente, um movimento de reafirmação de seus preceitos. E isso se dá com a retomada de teses já escritas, com afirmação de sacramentos e passagens bíblicas historicamente consagradas no imaginário popular, pautando-se sempre no medo, o temor a Deus. A obra se apresenta como código de conduta.

Quem lesse o livro de Kramer e Sprenger naquele tempo, ficaria assustado ao ver que o fato de ter sonhado com água na noite anterior poderia significar algo mais grave do que se imaginava. Ficaria igualmente em alerta ao observar o comportamento de seus vizinhos que, a despeito de serem casados há vários anos, não tiveram filhos. Muitos outros exemplos ainda poderiam ser dados.

A escrita de Kramer e Sprenger segue esse tom. Eram eles os responsáveis por apresentar esse código de conduta. O livro é impositivo, de verdades certeiras. Poucos são os adjetivos e infinitas as passagens bíblicas. Constitui-se basicamente com uma estrutura lógica próxima à aristotélica, insinuando sempre a existência de uma tese, seguida de antítese, concluída por síntese alicerçada no conhecimento indutivo.

De leitura fácil, não foi escrito para se restringir a um público doutor. Devido ao conteúdo informativo, recorre aos Antigo e Novo Testamento, bem como a relatos populares de feitos de bruxaria, conseguindo dialogar com as mais simples e modestas pessoas. No tom impositivo, sempre apela para um diálogo direto com o leitor, induzindo-o a conclusões sobre o que é dito. Os capítulos, embora curtos, possuem uniformidade, com apresentação de uma dúvida seguida de resposta. Não há ordem obrigatória de leitura, podendo-se fazer uma consulta no que toca à dúvida que o aflige naquele momento, descobrindo a maneira correta de conduta.

O Martelo das Feiticeiras é um livro que parte do princípio de uma crença hegemônica. Mobiliza a fé e sentimentos a despeito de qualquer comprovação científica. Parece a apresentação de um movimento que tenta se afirmar em meio à necessidade de resposta cobrada pelos tempos questionadores. Porém, deve-se ter um pouco mais de atenção na leitura. Isso porque o seu caráter de projeto é evidente. E, neste caso, é um projeto a desconsiderar de modo arbitrário, em nome da dominação exercida por uma ideologia, quaisquer conquistas científicas ou tecnológicas que afirmem a verdade. Enfim, estamos diante de algo bastante familiar, não?

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Em outra categoria

Anora foi o grande vencedor do prêmio de Melhor Filme do Oscar 2025. Ainda Estou Aqui, longa brasileiro que concorria na categoria, não foi escolhido pelos votantes.

O longa custou US$ 6 milhões para ser produzido - um dos menores orçamentos da história da premiação - e, nas últimas estimativas, faturou cerca de US$ 38 milhões de bilheteria ao redor do mundo.

Indicações de 'Anora' ao Oscar 2025

Anora foi indicado em seis categorias no Oscar 2025: Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Original e Melhor Edição.

Outros prêmios

Em maio de 2024, Anora venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes e se colocou como um sério concorrente ao Oscar. Ao longo da temporada, no entanto, viu os filmes rivais ganharem mais destaque e, apesar de ser bastante elogiado pela crítica, passou a ser tratado como um azarão.

A maré mudou nas últimas semanas. Surpreendentemente, o longa venceu o prêmio de Melhor Filme no Critics Choice Awards. Confirmando o bom momento, também foi vitorioso no Directors Guild Awards, no Producers Guild Awards e no Writers Guild of America Awards, três dos principais prêmios dos sindicatos de Hollywood.

Sobre o que é

Em Nova York, a jovem stripper Anora (Mikey Madison) conhece o filho de um oligarca russo e engata um improvável romance. Após um casamento impulsivo em Las Vegas, a família de Ivan Zakharov (Mark Eydelshteyn) planeja retornar para os Estados Unidos com um único objetivo - anular a união entre o casal. Descrito como um "conto de fadas às avessas", o longa subverte a história da Cinderela para falar sobre as falhas do Sonho Americano.

Elenco

Em Anora, Mikey Madison interpreta Ani, uma jovem stripper que se deslumbra com a vida de luxos que o dinheiro pode proporcionar. O papel rendeu a atriz uma indicação ao prêmio de Melhor Atriz. Já Mark Eydelshteyn é Ivan Zakharov, filho de um oligarca russo que contrata os serviços de Ani por tempo indeterminado.

Yura Borisov interpreta Igor, um capanga russo da família Zakharov. O papel rendeu ao ator uma indicação ao prêmio de Melhor Ator Coadjuvante. Completam o elenco Karren Karagulian e Vache Tovmasyan, que interpretam outros dois capangas da família Zakharov, e Aleksei Serebryakov e Darya Ekamasova, que vivem o pai e a mãe de Ivan, respectivamente.

Entrevistas

Em entrevista ao Estadão, Sean Baker e Mikey Madison discorreram sobre o que torna Anora um longa tão único. Em especial, falaram sobre a temática de trabalhadores sexuais - uma constante no trabalho de Baker - e sobre como o filme busca quebrar as expectativas do público.

"Sempre pensei em Anora como algo fora do 'mainstream' e um pouco divisivo por causa de seus temas, mas ele parece estar agradando às pessoas de maneira universal. E isso é maravilhoso", afirmou Sean Baker.

Críticas

O filme foi bastante elogiado pela crítica internacional. No site Rotten Tomatoes, que agrega análises de profissionais da indústria, o longa conta com 93% de aprovação. No New York Times, a obra de Sean Baker foi descrita como o "nascimento de uma estrela".

"Esse papel exige que ela [Mikey Madison] vá ao extremo, com elementos de pastelão, romance, comédia e tragédia, além de dançar com pouquíssima roupa e dar uns socos poderosos", escreveu a crítica Alissa Wilkinson. "E a cada momento Madison fica mais fascinante."

"Anora é uma fábula moderna e obscena, povoada por strippers e capangas. Como a maioria dos filmes de Baker, fala sobre os limites do sonho americano, sobre as muitas paredes invisíveis que se interpõem no caminho das fantasias de igualdade e oportunidade, sobre como se erguer pelas próprias pernas", finalizou.

Polêmicas

A principal polêmica de Anora decorreu da falta de um coordenador de intimidade no set de filmagem de Sean Baker. O cargo, que vem ganhando cada vez mais importância em Hollywood, é responsável por supervisionar cenas íntimas que envolvam sexo simulado e nudez.

Em uma era pós-Me Too, o trabalho do supervisor garante que todos os envolvidos se sintam seguros e possam se manifestar caso algo os deixe desconfortável. Em Anora, cenas de sexo e nudez compõem uma boa parte do filme. Baker e a equipe, no entanto, optaram por não utilizar um coordenador de intimidade durante as gravações do longa.

"Foi uma escolha que fiz. A produção me ofereceu, se eu quisesse, um coordenador de intimidade", afirmou Mikey Madison no quadro Actors on Actors, da Variety. A atriz explicou que a decisão foi tomada por ela e por Mark Eydelshteyn e que, apesar da polêmica, a experiência foi extremamente positiva para ela.

Onde assistir

Em cartaz, Anora estreou nos cinemas brasileiros em 23 de janeiro. Não há previsão, no momento, para exibição em plataformas de streaming.

Os indicados ao Oscar de Melhor Filme em 2025

Anora

O Brutalista

Um Completo Desconhecido

Conclave

Duna: Parte 2

Emilia Pérez

Ainda Estou Aqui

Nickel Boys

A Substância

Wicked

'O Brutalista' vence Oscar de melhor trilha sonora. O filme disputou categoria com Conclave, O Robô Selvagem, Wicked e Emilia Pérez. O longa venceu prêmio de melhor fotografia também.

Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional na noite deste domingo, 3. É o primeiro longa brasileiro a conquistar o feito. O diretor Walter Salles dedicou prêmio a Eunice Paiva. Ele também dedicou estatueta a Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. "É uma coisa extraordinária", disse sobre vitória.

A produção superou os concorrentes Emília Pérez (França), A Semente do Fruto Sagrado (Alemanha), A Garota da Agulha (Dinamarca) e Flow (Letônia). O francês, que venceu o Prêmio do Júri em Cannes 2024 e foi indicado a 13 categorias do Oscar, incluindo a de melhor filme, foi considerado como o favorito nos primeiros momentos da disputa, mas acabou se envolvendo em diversas polêmicas.