Alucinações, sede e desespero: como migrantes sobreviveram a 36 dias no mar

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A viagem saindo da empobrecida cidade de pescadores de Fass Boye, no Senegal, até as Ilhas Canárias, na Espanha, uma porta de entrada para a União Europeia onde esperavam encontrar trabalho, deveria durar uma semana.

Mas o barco de madeira que levava 101 homens e rapazes estava sendo empurrado para cada vez mais longe de seu destino.

Não havia terra à vista. Ainda assim, quatro homens acreditaram, ou deliraram, que poderiam nadar até a costa. Eles pegaram recipientes de água vazios e tábuas de madeira, qualquer coisa que os ajudasse a flutuar. E um a um, eles pularam.

Dezenas de outros fizeram a mesma coisa antes de desaparecerem no oceano. Os migrantes que ficaram no barco assistiram enquanto seus irmãos desapareciam. Os que morreram a bordo foram jogados no oceano, até que os sobreviventes não tiveram mais energia e os corpos começaram a se acumular.

No 36º dia, um navio de pesca espanhol os avistou. Era 14 de agosto, e eles estavam 290km a nordeste de Cabo Verde, o último grupo de ilhas no centro-leste do oceano Atlântico, antes do imenso vazio que separa a África Ocidental do Caribe.

Para 38 homens e rapazes, foi a salvação. Para os outros 63, foi tarde demais.

Com muita frequência, os migrantes desaparecem sem deixar rastros, sem testemunhas, sem memória.

O número de pessoas deixando o Senegal rumo à Espanha atingiu níveis recordes este ano, e a Associated Press entrevistou dezenas de sobreviventes, socorristas, trabalhadores humanitários e autoridades para entender o que os homens enfrentaram no mar, e por que tantos estão dispostos a colocar novamente suas vidas em risco. O caso deles é uma rara crônica da traiçoeira rota de migração da África Ocidental para a Europa.

O pescador senegalês Papa Dieye estava enfrentando dificuldades para sobreviver com 20.000 francos CFA (R$163) por mês. "Não há mais peixes no oceano", ele lamenta.

Anos de pesca excessiva pelas embarcações industriais europeias, chinesas e russas acabaram com os meios de subsistência dos pescadores senegaleses, e os levaram a medidas desesperadas.

"Queremos trabalhar para construir casas para nossas mães, irmãos e irmãs", explica.

Nos primeiros dias, a viagem seguia lenta, mas suave. No quinto dia, os ventos se rebelaram.

As tensões a bordo aumentaram, segundo Ngouda Boye, de 30 anos, outro pescador de Fass Boye. "Quando já quase conseguíamos ver a Espanha, o combustível acabou", diz Dieye. Era o décimo dia.

Em Fass Boye, os familiares estavam começando a ficar ansiosos. A viagem de 1.500 quilômetros entre o Senegal e as Canárias normalmente leva uma semana. Dez dias depois, eles ainda não tinham notícias.

As chegadas de migrantes às Canárias atingiram um recorde de 35 mil pessoas este ano, mais que o dobro do ano passado. Para outros, a jornada migratória terminou em tragédia. Barcos inteiros desapareceram no Atlântico, constituindo os chamados "naufrágios invisíveis".

As autoridades espanholas sobrevoam rotineiramente uma imensa área do Atlântico em torno das Ilhas Canárias, em busca de migrantes perdidos. Mas as vastas distâncias, as condições climáticas voláteis e os barcos relativamente pequenos dificultam que eles sejam vistos.

Enormes navios cargueiros passavam pelos candidatos a migrantes quase todos os dias, desestabilizando seu instável barco de madeira em formato de canoa, conhecido como piroga. Ninguém veio socorrê-los. Pelas normas do direito internacional, os capitães são obrigados a "prestar assistência a qualquer pessoa encontrada no mar em risco de se perder". Mas é difícil fazer cumprir essa regra.

Não demorou muito para que os passageiros começassem a apontar dedos para o capitão do barco, que não era nativo de Fass Boye. "Ele fazia coisas de feiticeiro. Dizia coisas sem sentido", conta Dieye. A crença na bruxaria e no poder das maldições é muito forte em toda a África Ocidental.

"Eles o amarraram", diz Dieye. "Ele foi o primeiro a morrer."

Na terceira semana, eles ficaram sem água. Não havia mais nada além do oceano. Aqueles que tentaram matar a sede com água salgada morreram. Aqueles que tomaram apenas pequenos goles sobreviveram. A fome os torturava tanto quanto a sede.

"Às vezes eu me sentava na borda da piroga", conta Bathie Gaye, de 31 anos, de Diogo Sur Mer, no Senegal, um dos sobreviventes, "para que, se eu morresse, não precisasse cansar os outros - eles poderiam só me empurrar".

Fernando Ncula, de 22 anos, da Guiné-Bissau, era um dos dois únicos estrangeiros a bordo. Seu amigo sucumbiu à sede e à fome por volta do 25º dia, lembra Ncula.

Quando ele abriu os olhos na manhã seguinte, o corpo havia desaparecido. Outros o haviam jogado no oceano. Ele foi o único forasteiro que restou, e ficou aterrorizado com a possibilidade de também ser jogado ao mar.

"Por que você não está cansado como todos nós?", eles interrogaram, segundo lembra Ncula. Eles o amarraram.

Sem conseguir se mover, e sem comida, nem água, ele passou dois dias perdendo e recobrando a consciência. Finalmente, um homem mais velho teve pena e o soltou. Seu salvador também acabou morrendo.

A morte parecia inevitável; esperar por ela era insuportável. Ao atingirem a marca de um mês, as pessoas começaram a pular na tentativa desesperada de nadarem até um lugar seguro, ou talvez pelo menos se libertarem do sofrimento. Os sobreviventes contam que trinta homens e rapazes morreram assim.

Duas noites depois que os últimos homens se foram, apareceram luzes no céu. Era o Zillarri, uma embarcação de apoio à pesca de atum, de bandeira de Belize e propriedade espanhola.

"Eles estavam tão magros. Via seus olhos e dentes e apenas ossos", lembra Abdou Aziz Niang, um mecânico senegalês que trabalhava no navio. "Há quanto tempo vocês estão aqui?", ele lhes perguntou.

Haviam se passado 36 dias. Então aqueles homens, que haviam fugido para a Europa porque a sobrepesca industrial havia tornado seus meios de subsistência impraticáveis, estavam sendo resgatados por um navio de pesca europeu.

Por fim, o navio recebeu instruções: leve as pessoas resgatadas até o porto mais próximo, Palmeira, na ilha do Sal, em Cabo Verde, a 290km de distância.

Eles estavam vivos, sim. Mas a que custo? Os familiares tinham investido em sua jornada para a Europa, vendendo bens para pagar pela viagem, na esperança de que os rapazes conseguissem empregos e enviassem dinheiro para casa. Em vez disso, voltaram com as mãos vazias e péssimas notícias.

Sem emprego, os sobreviventes estão de volta ao ponto de partida. Eles ainda estão procurando saídas, mesmo que isso signifique arriscar suas vidas novamente.

Entre eles está Boye. Embarcar em outra piroga poderia deixar sua esposa viúva e seus dois filhos órfãos. Mas "quando você não tem trabalho", diz, "é melhor ir embora e tentar a sorte".

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A rede social criada por Donald Trump, Truth Social, e a plataforma de vídeos Rumble entraram com um pedido de liminar em um tribunal dos Estados Unidos contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. A informação é da agência de notícias Reuters.

O pedido busca impedir ordens emitidas pelo ministro, sob o argumento de que elas "violam a soberania americana, a Constituição e as leis dos Estados Unidos". Elas também disseram que Moraes ameaçou processar criminalmente o CEO do Rumble, Chris Pavlovski.

Na sexta-feira, 21, Moraes havia determinado a suspensão do Rumble no Brasil por tempo indeterminado, até que a plataforma cumprisse as ordens judiciais dadas e o pagamento de multas. Isso porque antes ele ordenara que a empresa indicasse representantes legais no País.

O STF já definiu que plataformas estrangeiras precisam constituir representantes no Brasil para receber intimações e responder pelas empresas.

Entenda a polêmica

Em um despacho, o ministro afirmou que a plataforma incorreu em "reiterados, conscientes e voluntários descumprimentos das ordens judiciais, além da tentativa de não se submeter ao ordenamento jurídico e Poder Judiciário brasileiros".

"Chris Pavlovski confunde liberdade de expressão com uma inexistente liberdade de agressão, confunde deliberadamente censura com proibição constitucional ao discurso de ódio e de incitação a atos antidemocráticos", escreveu Moraes.

Além de exigir a indicação de um representante legal, o ministro também havia determinado o bloqueio do canal do blogueiro Allan dos Santos e a interrupção de repasses de monetização ao influenciador. Também ordenou que novos perfis do influenciador fossem barrados. Outras redes sociais, como YouTube, Facebook, Twitter e Instagram, foram notificadas para bloquear as contas de Allan dos Santos e cumpriram as decisões de Moraes.

O STF não conseguiu intimar o Rumble porque a empresa não tem um responsável no Brasil. Os advogados localizados informaram que não são representantes legais da plataforma e que não têm poderes para receber citações ou intimações. No dia 17 de fevereiro, eles renunciaram ao mandato que tinham para atuar em causas da rede social.

O Rumble move uma ação contra Moraes na Justiça dos Estados Unidos, em conjunto com Trump Media, ligada ao presidente americano. As companhias alegam que o ministro do STF violou a soberania norte-americana ao ordenar a suspensão do perfil de Allan dos Santos. O blogueiro teve prisão preventiva decretada em 2021 e está foragido desde então.

O Rumble voltou a funcionar no Brasil em fevereiro deste ano. A plataforma, que estabelece uma política menos restrita de moderação de conteúdo, foi desativada no País em dezembro de 2023 por discordar das exigências da Justiça brasileira. Ela é conhecida por abrigar personalidades e usuários de extrema direita.

O influenciador Pablo Marçal (PRTB) foi condenado à inelegibilidade porque vendeu apoio político na campanha de 2024. Em vídeo publicado nas redes sociais, ele se ofereceu para gravar vídeos divulgando candidatos a vereador por R$ 5 mil.

Em uma transmissão ao vivo na sexta-feira, 21, o influenciador disse que vai recorrer da decisão. Ele alegou que não chegou a "materializar" os vídeos porque foi barrado pela equipe jurídica da campanha.

Pablo Marçal foi candidato à Prefeitura de São Paulo nas eleições municipais de 2024 e terminou em terceiro lugar, com 1.719.274 de votos (28,14% dos votos válidos).

Ao se oferecer para divulgar os vereadores, ele afirmou que estava "concorrendo a uma eleição desleal" porque não usou dinheiro público enquanto "os 'bonitões' gastam R$ 100 milhões para fazer propaganda enganosa".

"Você conhece alguém que queira ser vereador e é candidato, que não seja de esquerda, tá, esquerda não precisa avisar. Se essa pessoa é do bem e quer um vídeo meu para ajudar a impulsionar a campanha dela, você vai mandar esse vídeo e falar 'mano, olha aqui que oportunidade, né?' Essa pessoa vai fazer o quê? Ela vai mandar um Pix para a minha campanha de doação, Pix de cinco mil. Fez essa doação, eu mando o vídeo. Vai clicar aqui no formulário, clicou aqui no formulário, cadastra, a equipe vai entrar em contato. Tamo junto, fechou, você ajuda daqui em São Paulo e eu ajudo daí."

O juiz Antonio Maria Patiño Zorz, da 1.ª Zona Eleitoral, declarou Pablo Marçal inelegível por abuso de poder econômico e político, uso indevido de meios de comunicação social e captação ilícita de recursos.

A sentença afirma que a oferta feita pelo influenciador "foi levada a sério por candidatos a vereador que efetuaram doações confirmadas pelo requeridos" e teve "potencialidade para macular a integridade do processo eleitoral em razão do efeito que produziram na consciência política dos cidadãos".

O juiz Antonio Zorz afirmou ainda que ele espalhou fake news sobre o fundo partidário e se "colocou, de forma gravemente distorcida, como vítima de um sistema eleitoral desleal que não lhe permitiu usar financiamento público do fundo eleitoral". Com isso, na avaliação do magistrado, o influenciador comprometeu a "normalidade e legitimidade" da eleição.

Como a decisão foi tomada na primeira instância, há possibilidade de recurso ao Tribunal Regional Eleitoral.

Deflagrada pela Polícia Federal em 2015, a Operação Zelotes inicialmente apurava suspeitas de um esquema de corrupção no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) - órgão colegiado do Ministério da Fazenda - que é a última instância administrativa para o julgamento de autuações da Receita Federal a empresas e pessoas físicas. O objetivo do esquema seria vender, por meio de conselheiros e auditores, informações privilegiadas e facilidades que pudessem resultar na reversão de multas discutidas no Carf.

Quando a operação foi deflagrada, o Carf era ocupado por 216 conselheiros, metade indicada pela Receita e outra parte por confederações empresariais, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), e uma parte menor pelas centrais sindicais.

Até então, os conselheiros indicados pelo setor privado podiam desempenhar suas funções no Carf e, ao mesmo tempo, advogar em casos tributários. No mês seguinte à revelação do escândalo, o governo fixou novas regras para funcionamento do órgão, com remuneração para seus integrantes e restrições ao exercício das atividades profissionais.

De acordo com os investigadores, o esquema de corrupção no Carf era "legalizado" por contratos de serviços prestados por escritórios de advocacia e consultorias que faziam lobby para influenciar nas decisões do órgão. Após abordagem das empresas alvos de multas da Receita, esses consultores elaboravam contratos para forjar a legalidade do serviço prestado. A partir daí, segundo a investigação, as empresas pagavam propina por meio de depósitos em diversas contas bancárias para evitar o rastreamento.

Os investigadores dizem que vários conselheiros do Carf se recusaram a participar do esquema e repudiaram a abordagem, mas outros aceitaram negociar decisões. À época, tramitavam no órgão mais de 115 mil processos tributários que englobam cerca de R$ 500 bilhões em discussão.

Desdobramentos da Zelote levaram a outros casos e até suspeita de compra de Medida Provisória

Com desdobramentos, a operação Zelotes foi ampliada e virou um guarda-chuva para grandes investigações sobre suspeitas de corrupção que atingiram grandes personagens da República. O ex-ministro Antonio Palocci foi uma testemunha nas investigações. O ex-ministro Guido Mantega virou réu, mas o caso dele acabou prescrito.

O caso da venda de uma Medida Provisória para favorecer montadores de veículos no segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2009, também acabou entrando no escopo da Zelotes. A denúncia foi publicada pelo Estadão em outubro de 2015.

Lula chegou a virar réu nesse caso por suposto tráfico de influência, mas foi absolvido em 2021 depois de a Justiça entender que a acusação não demonstrou de maneira convincente o envolvimento dele.

Até um filho de Lula virou réu, junto com o pai, em um processo que apontava tráfico de influência na compra de caças suecos pelo governo brasileiro. O caso das aeronaves foi suspensa pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, em 2022.

A decisão permitiu que Lula disputasse as eleições daquele ano sem responder a ações penais na Justiça. Lewandowski, hoje ministro da Justiça do governo Lula, entendeu que procuradores do DF agiam de forma articulada com membros da Lava Jato. Ele se baseou em trocas de mensagens da força-tarefa de Curitiba que acabaram vazadas por hackeamento.

Apesar dos dez anos desde a deflagração da Zelotes, ainda há ações sem julgamento e sem trânsito em julgado.