O governo federal está processando a empresa de mídia Brasil Paralelo por publicação de conteúdo desinformativo sobre o caso Maria da Penha. Nesta quinta-feira, a Advocacia-geral da União (AGU) entrou com uma ação civil pública em que pede indenização de R$ 500 mil e a publicação de uma nota informando que o conteúdo não expressa a verdade sobre o crime do qual Maria da Penha foi vítima.
De acordo com a União, o vídeo que motivou a ação dá ênfase às teses apresentadas à Justiça pela defesa do ex-marido de Maria da Penha, Marco Antonio Heredia Viveros, sem informar que tais alegações foram rejeitadas em processo judicial com direito a ampla defesa.
O conteúdo, produzido pela empresa, divulgado em suas redes sociais e disponibilizado na plataforma de assinantes, afirma na sinopse que "Uma das principais leis do País possui uma origem polêmica, tendo quase passado em branco se não fosse pelo mais novo lançamento da BP".
No texto da ação, a AGU ressalta que a condenação de Marco Antonio pela tentativa de feminicídio que deixou a então esposa paraplégica teve base no conjunto das provas apuradas no inquérito policial e confirmadas na instrução processual.
O caso foi acompanhado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Brasil foi responsabilizado por negligência e omissão em relação à violência doméstica.
Segundo a União, o vídeo tem "nítida intenção de gerar descrédito sobre o julgamento", o que atingiria a credibilidade do episódio que deu origem à Lei Maria da Penha e, consequentemente, do conjunto de políticas públicas nela amparadas.
"As mulheres perdem a expectativa de que será dada credibilidade à sua palavra, de modo que a conduta danosa coloca em risco a eficiência das políticas públicas, colaborando para o crescente número de casos de violência contra as mulheres", diz o texto da ação da AGU.
A divulgação do vídeo que enfatiza argumentos não acatados pela Justiça teria fomentado comentários misóginos, que foram anexados ao processo. Um aumento no número de buscas pelas palavras "Maria da Penha mentiu" também foi identificado nos dias subsequentes ao lançamento do conteúdo, em julho de 2023.
A Ação Civil Pública pede a condenação da empresa de mídia ao pagamento de indenização no valor de R$ 500 mil por danos morais coletivos. Também prevê a publicação de uma nota que informe que o conteúdo mostrado "não expressa a verdade sobre o crime praticado" contra Maria da Penha e que "pode incentivar ódio e novas violências contra todas as mulheres que buscam apoio nas políticas públicas de proteção".
O Estadão entrou em contato com o setor de relações públicas da empresa Brasil Paralelo, mas ainda não houve retorno.
O caso Maria da Penha
Em 1983, Maria da Penha Fernandes foi vítima de tentativa de feminicídio por parte de seu então marido, Marco Antonio Heredia Viveros. Atingida por um tiro, ela teve lesões irreversíveis na coluna e ficou paraplégica. Marco Antonio declarou que o disparo teria sido fruto de uma tentativa de assalto, versão que foi rejeitada no curso do processo judicial.
Ele foi condenado duas vezes, em 1991 e 1996, mas a pena não foi cumprida sob a alegação de irregularidades processuais. Em 1998, o caso foi denunciado para a OEA, que, em 2001, responsabilizou o Estado brasileiro.
A entidade emitiu quatro recomendações ao Brasil:
- Completar o julgamento do processo penal do responsável pelas agressões;
- Investigar os motivos que levaram à demora na análise do caso pela Justiça;
- Assegurar à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações;
- Efetivar um processo de reforma que evitasse a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.
Viveros foi preso em 29 de outubro de 2002, 19 anos após o crime. Em março de 2004, ele passou ao regime semiaberto e, em fevereiro de 2007, conseguiu liberdade condicional.
Em 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), a primeira do País a tratar especificamente da violência doméstica. A própria Maria da Penha se tornou ativista e referência no combate à violência contra a mulher.
Em 2024, ela foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Ceará, após receber ataques e ameaças orquestrados em comunidades digitais que disseminam ódio contra mulheres.