Ação golpista acentua debate sobre Judiciário e 'democracia militante'

Política
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No dia 1.º de janeiro ninguém foi mais tietado na recepção do Itamaraty do que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Todos queriam fazer selfies com o também presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Moraes foi abraçado. Ouviu de um convidado: "Você é o cara". A festa para o ministro escondia uma disfunção do Estado no Brasil, que se agravou em 2022: quando o magistrado vira uma personalidade, como se fosse um político, é porque algo está fora do lugar nas instituições.

No domingo, 8, o ministro expediu seu mais duro despacho desde que se tornou relator do inquérito dos atos antidemocráticos, se configurando como alvo principal do bolsonarismo radical. Além de determinar o afastamento cautelar do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), a decisão ordena centenas de prisões em flagrante, manda intimar governadores, prefeitos e comandantes militares e a realização de diligências para identificar todos os extremistas que invadiram os prédios dos três Poderes, em Brasília.

"A democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois, como ensinava Winston Churchill, 'um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado'", escreveu Moraes.

A forte reação aos atos golpistas e à depredação das sedes dos Poderes foi, nos últimos anos, precedida de um debate sobre limites entre o direito militante e a defesa da democracia - que, muitas vezes, permeou ações do STF e de outras Cortes superiores durante o governo de Jair Bolsonaro.

"A Corte tem sido crescentemente instada a trabalhar como se fosse parte do sistema político. Qual o risco? Quando ela joga esse jogo, ela perde a sua referência e passa a ser tratada não mais como ator jurídico, mas como ator político", observou o professor de Direito Público da USP Floriano de Azevedo Marques. Ele e outros analistas foram ouvidos antes dos atos radicais de domingo.

Essa foi a armadilha na qual o Judiciário se viu em 2022 diante de uma eleição polarizada e, principalmente, segundo juristas, em razão do comportamento de Bolsonaro. "Isso tem um custo. O Supremo vai para a primeira página de jornal e seus membros passam a ser tratados como atores políticos", disse Azevedo Marques.

Os contornos dessa história acentuaram-se em 2018, com a vitória de Bolsonaro na eleição presidencial. Ainda candidato, ele anunciou a ideia de aumentar em dez o número de ministros do Supremo. Queria obter maioria na Corte. Eleito, convidou o então juiz Sérgio Moro para ser seu ministro da Justiça. O homem da Lava Jato havia posto na cadeia o petista e atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e avançado sobre a cúpula do PSDB. Em 2019, procuradores da operação passaram a apurar denúncias contra ministros do STF.

Fake

Foi naquele ano que o presidente da Corte, Dias Toffoli, fez a portaria designando Moraes para relatar o inquérito 4781, o das "fake news". Toffoli não mencionou episódios ou quem seria investigado. Tudo que a portaria aponta para justificar o inquérito são "notícias fraudulentas, denunciações caluniosas, ameaças e infrações (...) que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares".

Primeiro se pensou que o alvo seriam os procuradores que estavam usando as redes sociais para criticar o STF. Mas logo Moraes mandou tirar do ar uma reportagem da revista Crusoé com menção a Toffoli em e-mails da Odebrecht. A reportagem nada tinha de falso. O ministro recuou. Nos anos seguintes, avançou sobre bolsonaristas, que foram alvo de buscas e prisões e tiveram contas nas redes sociais bloqueadas.

Neste mesmo período, entre 2019 e 2022, foram abertos outros inquéritos para investigar milícias digitais e atos antidemocráticos. Todos sob relatoria de Moraes, que atingiram empresários e parlamentares bolsonaristas. Eles permanecem até hoje sendo investigados. Após quatro anos de investidas, a grande maioria dos alvos não foi denunciada nem indiciada pela Polícia Federal.

Em julgamento do plenário do STF, em junho de 2020, os ministros decidiram declarar a legalidade e a constitucionalidade do inquérito das fake news. O placar foi de dez votos a um. Garantida essa retaguarda, pouco a pouco Moraes assumiu o papel que o levou a embates com Bolsonaro. Em meio a isso, o ministro assumiu a presidência do TSE com a missão de conduzir as eleições nas quais Bolsonaro buscava a reeleição.

Em agosto, ele deflagrou buscas e impôs bloqueios de contas bancárias de empresários participantes de um grupo de WhatsApp no qual insuflavam um golpe de Estado caso Lula fosse eleito. Depois, editou resolução que ampliou os poderes da Corte para retirar notícias falsas do ar, o que pôs o TSE no centro de um debate sobre excessos no afã de combater as fake news.

Militante

No mundo jurídico, a atuação de Moraes tem sido justificada com base na teoria da "democracia militante", conceito criado pelo alemão Karl Loewenstein. Para ele, a democracia nos anos 1920 e 1930 alimentou a tolerância e a liberdade que permitiram aos fascistas competirem com os democráticos e chegarem ao poder por não excluir "do jogo os que negam a própria existência das regras".

Esse papel militante do STF levou os entrevistados a apontar a necessidade de um "freio de arrumação" no País. Entre eles está o procurador regional da República Bruno Calabrich. "A concentração das funções de juiz, investigador e até de vítima em uma só pessoa é uma clara violação ao sistema processual penal brasileiro. Entretanto, o colegiado do STF chancelou a instauração e a condução desses inquéritos."

Outro crítico dos inquéritos é o desembargador aposentado Wálter Maierovitch. "Inquérito é para apurar autoria e materialidade de fato ocorrido. Agora tudo o que é ato antidemocrático vai para o inquérito do Moraes? Moraes é um juiz de exceção."

O defensor público Gustavo Ribeiro disse ter medo de que "excessos considerados válidos em desfavor de grandes corruptos e pessoas poderosas que, por alguma razão, colocaram em risco o estado democrático de direito, acabem sendo invocados contra os mais pobres, o que costuma acontecer."

Para Azevedo Marques, o STF deve ter agora um compromisso com a volta à normalidade. Ele descreve como foram esses "tempos de exceção". "A PGR não agia, o Executivo desafiava permanentemente o Judiciário e as regras do estado democrático de direito e, na eleição, alguns atores assumida e previamente se dispunham a negar o jogo eleitoral, cuja lógica é quem tiver mais voto leva." E o Brasil não tinha instrumentos para enfrentar o golpismo.

"Assim, o Judiciário, pela primeira vez na história republicana, se armou com o instrumento do inquérito judicial, que não existe em país de separação dos três Poderes, como o nosso", avaliou Maierovitch. Para ele, foi a falha do sistema de freios e contrapesos da República que levou à criação desse "instrumento de autodefesa". "A Câmara não fez o impeachment do presidente - e eu fui signatário de dois pedidos - e o procurador-geral da República não agiu." Para ele, isso levou Moraes a impedir que o golpismo bolsonarista prosperasse, salvando as eleições. "Mas salvou na legalidade e na legitimidade? No meu modo de ver, não. Assisti a tudo sabendo que o Supremo agiu fora da legalidade e da legitimidade. Mas eu coloco: graças a Deus."

Na avaliação de Maierovitch, após os atos de domingo, a posição de Moraes ficou fortalecida. "Ele agiu bem, pois atuou após ser provocado pela AGU e com base na Constituição."

Lava Jato

Os entrevistados fazem um paralelo entre a situação atual e a da Operação Lava Jato. Ninguém discute que os objetivos de uma ou de outra eram legítimos: combater a corrupção e manter a democracia. Em ambos os casos, a maioria admite que houve excessos. Como na Lava Jato, agora seria a vez de a Corte fazer o freio de arrumação na defesa democrática.

Para Calabrich, a defesa da democracia é inegociável e deve ser feita de forma intransigente, rigorosa e eficiente. "Exatamente por isso, não podemos transigir com regras que são próprias do estado democrático de direito."

Para enfrentar as críticas à atuação da Corte, os ministros do STF decidiram limitar o poder das decisões monocráticas, impondo a revisão pelas turmas ou pelo plenário das decisões mais urgentes, o que inclui as medidas cautelares em inquéritos, como prisões. A Corte, que começou 2022 com 24.082 casos, 8% a menos do que em 1.º de janeiro de 2021, também limitou o tempo de vista processual em 90 dias, obrigando a liberação dos autos caso o ministro não se manifeste nesse período.

A professora de Direito Constitucional da UFMG Juliana Cesário Alvim Gomes disse que fica clara nessa decisão uma tentativa de o STF falar de maneira mais colegiada por meio da redução dos poderes individuais dos ministros. Ribeiro lembra que as decisões monocráticas não permitem sustentação oral, o debate entre ministros e a entrega de memoriais, o que limita a defesa.

Calabrich afirmou que a nova regra vai evitar a eternização das decisões liminares em casos criminais graves. "Seja para preservar os direitos do investigado, seja para preservar o resultado útil de uma investigação, é importante que o pleno julgue, compartilhando a responsabilidade entre os ministros."

As mudanças, no entanto, não seriam suficientes para enfrentar as ameaças à democracia. Para Azevedo Marques, é necessário mudar o marco civil da internet, pois "o ataque antidemocrático se construiu" em torno das redes sociais - basta ver como se deu a convocação para as ações golpistas de domingo. A mudança na lei evitaria que o Judiciário tenha de agir como polícia.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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Mais de 10 pessoas morreram nesta terça-feira, 29, após confrontos em um subúrbio da capital da Síria entre combatentes drusos e grupos pró-governo, disseram um monitor de guerra e um grupo ativista. Os dados de vítimas, no entanto, ainda são imprecisos.

Homens armados drusos sírios entraram em confronto nas últimas semanas com forças de segurança do governo e homens armados pró-governo no subúrbio de Jaramana, no sul de Damasco.

O Observatório Sírio para os Direitos Humanos, sediado no Reino Unido, afirmou que pelo menos 10 pessoas foram mortas, quatro delas agressores e seis moradores de Jaramana. O coletivo de mídia ativista Suwayda24 afirmou que 11 pessoas foram mortas e 12 ficaram feridas. Outros relatos indicam até 14 mortos.

Os confrontos começaram por volta da meia-noite de segunda-feira, 28, depois que uma mensagem de áudio circulou nas redes sociais em que um homem estaria criticando o profeta Maomé.

O áudio foi atribuído ao clérigo druso Marwan Kiwan. Mas ele afirmou em um vídeo postado nas redes sociais que não era responsável pelo áudio, o que irritou muitos muçulmanos sunitas.

"Nego categoricamente que o áudio tenha sido feito por mim", disse Kiwan. "Eu não disse isso, e quem o fez é um homem perverso que quer incitar conflitos entre partes do povo sírio."

Na terça-feira à noite do horário local, representantes do governo e autoridades de Jaramana chegaram a um acordo para encerrar os conflitos, indenizar as famílias das vítimas e trabalhar para levar os perpetradores à justiça, de acordo com uma cópia do acordo que circulou em Jaramana e foi vista pela Associated Press.

Não ficou imediatamente claro se a trégua será mantida por muito tempo, já que acordos semelhantes no passado fracassaram posteriormente.

O Ministério do Interior afirmou em comunicado que estava investigando o áudio, acrescentando que a investigação inicial demonstrou que o clérigo não era responsável. O ministério pediu à população que cumpra a lei e não aja de forma a comprometer a segurança.

A liderança religiosa drusa em Jaramana condenou o áudio, mas criticou duramente o "ataque armado injustificado" no subúrbio. Instou o Estado a esclarecer publicamente o ocorrido.

"Por que isso continua acontecendo de tempos em tempos? É como se não houvesse um Estado ou governo no comando. Eles precisam estabelecer postos de controle de segurança, especialmente em áreas onde há tensões", disse Abu Tarek Zaaour, morador de Jaramana.

No final de fevereiro, um membro das forças de segurança entrou no subúrbio e começou a atirar para o alto, o que levou a uma troca de tiros com homens armados locais, resultando na sua morte. Um dia depois, homens armados vieram do subúrbio de Mleiha, em Damasco, para Jaramana, onde entraram em confronto com homens armados drusos, resultando na morte de um combatente druso e no ferimento de outras nove pessoas.

Em 1º de março, o Ministério da Defesa de Israel disse que os militares foram instruídos a se preparar para defender Jaramana, afirmando que a minoria que prometeu proteger estava "sob ataque" pelas forças sírias.

Os drusos são um grupo minoritário que surgiu como um desdobramento do ismaelismo, um ramo do islamismo xiita, no século X. Mais da metade dos cerca de 1 milhão de drusos em todo o mundo vive na Síria. A maioria dos outros drusos vive no Líbano e em Israel, incluindo as Colinas de Golã, que Israel conquistou da Síria na Guerra do Oriente Médio de 1967 e anexou em 1981.

Desde janeiro de 2025, o poder na Síria está nas mãos de um governo de transição liderado pelo presidente interino Ahmed al-Sharaa, líder da coalizão islamista que em janeiro derrubou o regime do presidente Bashar al-Assad, agora no exílio. (COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS)

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, afirmou nesta terça-feira, 29, que seu governo está se preparando para conversas com os Estados Unidos sobre novas sanções à Rússia, afirmando que é importante continuar a exercer pressão sobre as redes de influência de Moscou, bem como sobre todas as suas operações de fabricação e comércio.

"Estamos identificando exatamente os pontos de pressão que empurrarão Moscou de forma mais eficaz para a diplomacia. Eles precisam tomar medidas claras para acabar com a guerra, e insistimos que um cessar-fogo incondicional e total deve ser o primeiro passo. A Rússia precisa dar esse passo", escreveu o canal oficial de Zelensky no Telegram.

Além disso, o líder ucraniano enfatizou que o país está se esforçando para sincronizar suas sanções da forma mais completa possível com todas as da Europa.

Divergências apresentadas pelo Egito e pela Etiópia à reforma do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas impediram a divulgação de um comunicado conjunto após a reunião de ministros das Relações Exteriores do Brics. Em vez disso, foi divulgada nesta terça-feira, 29, uma declaração da presidência do grupo de ministros, ocupada atualmente pelo Brasil. Houve consenso nos demais temas debatidos.

O texto diz que os ministros presentes à reunião, que ocorreu nesta segunda e terça-feira no Palácio do Itamaraty, na região central do Rio de Janeiro, "apoiaram uma reforma abrangente das Nações Unidas, incluindo seu Conselho de Segurança, com vistas a torná-lo mais democrático, representativo, eficaz e eficiente, e a aumentar a representação de países em desenvolvimento nos quadros de membros do Conselho".

As mudanças teriam como objetivo uma resposta adequada "aos desafios globais prevalecentes" e apoiar "as aspirações legítimas dos países emergentes e em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina, incluindo Brasil e Índia, de desempenhar um papel mais relevante nos assuntos internacionais, em particular nas Nações Unidas, incluindo seu Conselho de Segurança".

"Reconheceram também as aspirações legítimas dos países africanos, refletidas no Consenso de Ezulwini e na Declaração de Sirte", acrescenta o texto, que trouxe uma observação mencionando ter havido objeções dos representantes do Egito e Etiópia ao comunicado.

Ambos os países se opõem à eleição da África do Sul como país representante do continente africano. Em coletiva de imprensa, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, negou que tenha havido desacordo ou discordância.

"Não houve nenhum desacordo entre os países com relação às questões do Conselho de Segurança. O que acontece é que cada país tem posições e compromissos assumidos", argumentou Vieira a jornalistas, quando questionado sobre o impacto das divergências regionais no documento final. "Não houve nenhuma discordância, apenas cada país e países membros de grupos regionais, alguns africanos no grupo, apenas declararam suas posições e nós estamos trabalhando para compatibilizar todas as necessidades de cada um desses grupos para a declaração dos chefes de Estado."