Anna Muylaert inverte papéis de gênero em novo filme e reflete: 'Existem Oscars e Oscars'

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No mundo de O Clube das Mulheres de Negócios, estreia dos cinemas desta quinta-feira, 28, são as mulheres que detém todo o poder - econômico, social e político. A inversão de papéis de gênero é o ponto de partida para a sátira escrita e dirigida por Anna Muylaert, que se propõe a discutir não só o sexismo, como também o poder em si.

A cineasta começou a trabalhar no longa em 2016, na esteira do sucesso de seu Que Horas Ela Volta? (2015). Não por acaso, um ano antes da eclosão do #MeToo, movimento que ganhou força com a divulgação de casos de assédio sexual em Hollywood e passou a dar voz a vítimas de abuso. "Foi um ano em que as mulheres estavam muito inflamadas com a questão de gênero, de injustiças, principalmente no trabalho", conta ela em entrevista ao Estadão.

Porém, o lançamento do filme francês Não Sou Um Homem Fácil (2018), na Netflix, fez com que Muylaert optasse por um ajuste de rota para ir além do sexismo às avessas. "Nisso, veio a eleição do (ex-presidente Jair) Bolsonaro. Eu vi o mundo mudando muito rápido e resolvi trazer esses outros elementos não só de gênero, mas também políticos e tropicais."

Esses elementos tornam-se claros logo que se vê as personagens reunidas no clube que dá nome ao filme: Cesárea (Cristina Pereira), dona do local, é uma empresária em maus lençóis; há ainda uma empresária do agronegócio (Grace Gianoukas); uma candidata à presidência (Irene Ravache) que trai compulsivamente o marido, deprimido; uma política com retórica belicista (Katiuscia Canoro), sempre acompanhada por suas armas; e uma líder evangélica milionária (Shirley Cruz), entre outras.

"São atores da cena política contemporânea", diz a diretora, antes de notar que tais figuras não são novas na política brasileira - ela cita a obra o Rei da Vela, clássico do teatro de Oswald de Andrade. "Lá tem uns integralistas muito parecidos com os bolsonaristas; fui atrás de arquétipos de figuras do poder do patriarcado brasileiro."

Para a cineasta, a construção dos personagens abre margem para interpretação. "Para mim, é uma inversão em que as mulheres estão fazendo papel dos opressores que hoje são os homens, mas há quem possa interpretar que, se a mulher fosse para o poder, ela também estaria contaminada, que o poder corrompe. Eu entendo que um poder feminino seria diferente, mas ao mesmo tempo o filme discute o poder."

Corpos expostos e assédio

Na inversão proposta por O Clube das Mulheres de Negócios, são os homens que, na maior parte do tempo, estão com os corpos à mostra - ao contrário do que se costuma ver no audiovisual. O jornalista Candinho (Rafael Vitti), que vai ao clube para entrevistas combinadas por Cesárea, sua avó, usa um top cropped que deixa sua barriga exposta; os garçons que circulam no clube, por sua vez, usam shorts mínimos, assim como alguns dos namorados presentes.

"Muitas coisas que são normais num gênero, no outro são incômodas", nota Muylaert. "Quando a câmera vai para a bunda dos garçons de shortinho, é algo que obviamente salta aos olhos - se fosse o contrário, se fossem mulheres, seria normal, né?"

O nu feminino, por outro lado, é pouco presente no longa, mas quando existe, também não se conforma com as expectativas. Ítala Nandi, por exemplo, protagoniza um momento de nudez em uma ousada sequência de sexo grupal, cercada por homens jovens - coisa rara quando se trata de atrizes de 82 anos. "Acho que uma das formas de rebeldia é falar de etarismo em se tratando de mulher."

A cineasta conta que a cena foi filmada de forma cuidadosa, com atores que a própria Ítala escolheu, a partir de uma lista entregue por Muylaert. "Ela escolheu os que ela sentiu melhor, e no dia foi muito suave. Eles todos na faixa dos 20, ela na faixa dos 80, e eles foram muito educados com ela, foram muito gentis", lembra. "Terminou em um clima muito amoroso mesmo, que é engraçado porque essa cena, para mim, remete muito ao vídeo do Doria. Não é uma cena que a gente recorda com muito amor, mas (a do longa) da forma que foi feita, foi (com amor)." Ela se refere a um vídeo íntimo atribuído ao ex-governador de São Paulo, João Doria, que circulou nas redes sociais em 2018. O político sempre negou a autenticidade do material.

Indo além dos corpos, o filme também volta o olhar à questão do assédio e do abuso sexual, personificada em Candinho. O personagem de Vitti, em certo momento, é assediado por uma das mulheres. Ao falar com Cesárea, porém, ele não recebe acolhimento - a avó, na verdade, minimiza o acontecido. "Esse silêncio das vítimas é uma segunda violência; a gente conta uma violência (o abuso), mas na verdade são duas."

No Festival de Gramado, onde o filme foi exibido pela primeira vez, a atriz Cristina Pereira revelou ter sido vítima de abuso sexual quando tinha apenas 12 anos - e, tal qual Candinho, também foi silenciada por aqueles a seu redor. "Para a gente, falar de violência sexual já é difícil, e falar do silenciamento que vem após a violência também é difícil. Então, ela quebrou um tabu muito forte", diz Muylaert, recordando quão significativo foi o momento, que emocionou os presentes e também repercutiu na imprensa e nas redes sociais.

Oscar, cinema brasileiro e o futuro dos filmes

O Clube das Mulheres de Negócios estreia em meio ao que é o melhor ano do cinema brasileiro no pós-pandemia. De acordo com dados da Ancine, até setembro de 2024 os filmes nacionais haviam sido vistos por 7,37 milhões de espectadores, um pouco menos que o dobro registrado durante 2023 inteiro, quando 3,72 milhões de pessoas assistiram às nossas produções.

Muylaert vê o atual momento do cinema nacional "com mais otimismo", citando também o sucesso de Ainda Estou Aqui. "Este ano é um ano muito bom e nesse dia de hoje a gente está muito feliz que o filme do Walter (Salles) falando de ditadura, um filme com excelência, premiado em Veneza, esteja tendo tanto sucesso de público. Isso é para nós uma luz no fim uma luz no fim do túnel. É um exemplo de que ainda é possível. Nós ainda estamos aqui, né? E tem Arca de Noé, uma animação que também está indo bem. Tomara que enfim esses filmes puxem outros."

Questionada sobre a mobilização em torno da possível indicação para Ainda Estou Aqui no Oscar 2025, a cineasta diz que o longa de Walter Salles cumpre os principais requisitos para brigar por uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional. "Tem algumas premissas na categoria: o filme precisa ganhar um prêmio importante na Europa, precisa vender para o mundo todo, ser um grande sucesso no país de origem e precisa falar de uma realidade local. E ter dinheiro na campanha - sem dinheiro, não existe jangadinha ganhando nem entrando no Oscar internacional."

Apesar disso, ela compara a repercussão do novo longa com a de Democracia em Vertigem, filme de Petra Costa indicado na categoria de Melhor Documentário no Oscar 2020. "Existem Oscars e Oscars. A Petra Costa estava no Oscar e parece que a indicação dela não vale tanto, sabe, não foi tão celebrada. A própria Karen Harley, montadora do Que Horas Ela Volta? foi codiretora de um filme chamado Lixo Extraordinário, que também concorreu ao Oscar e também não se fala nisso, então acho que tem uma coisa patriarcal aí envolvida - que a corrida para os homens vale mais do que a corrida para as mulheres."

A cineasta critica, portanto, o que percebe como uma diferença de tratamento entre a possível indicação de Ainda Estou Aqui e a indicação concreta de Petra. Por que a categoria de filme internacional é mais valorizada do que a de documentário? "São duas categorias. A indicação dela deveria ser valorizada."

O cinema hoje

Muylaert também tem refletido sobre o papel do cinema em um mundo mediado por telas e redes sociais. "Antigamente, tinha um mundo real e o mundo audiovisual. A gente ia no cinema ver um filme, mas hoje o audiovisual faz parte da nossa vida. O cinema é uma das fatias dessa pizza desse grande audiovisual. Até para fazer uma receita você pega um vídeo no YouTube, o mundo foi migrando do real para o audiovisual."

"Acho que o cinema, a literatura ou o teatro, as peças de uma hora uma hora e meia, 2 horas, sempre serão um refúgio. Mas ainda não sabemos o lugar que eles vão ter nesse novo grande jogo. Este é um momento em que podem surgir novos formatos", acrescenta.

Um impacto que ela já sente, como criadora e como espectadora, está na velocidade das produções audiovisuais. "Os filmes estão um pouco mais rápidos do que eram há dez anos. A tendência da contemplação está diminuindo", diz ela, que credita esse movimento aos streaming: "Os americanos estão colocando novos modelos tanto de produção quanto de narrativas velozes, com algumas regras, como a primeira cena ter que ser muito forte para o cara não trocar o canal. Eles sabem minuto a minuto onde a pessoa largou o filme ou não."

Em outra categoria

A emboscada seguida da morte do ex-delegado-geral de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, não foi o primeiro crime do qual ele foi vítima. Em dezembro de 2023, Fontes sofreu um assalto, na Praia Grande, litoral paulista. Na época, ele já demonstrava preocupação com sua segurança e de familiares, após anos de atuação contra o Primeiro Comando da Capital (PCC).

"Eu combati esses caras durante tantos anos e agora os bandidos sabem onde moro. Minha família, agora, quer que eu deixe o emprego em Praia Grande e saia de São Paulo", disse ao Estadão após o episódio. Ele ainda apontava estar preocupado com a exposição do assalto nas mídias e que sua família se sentia ameaçada.

Ele e a mulher saíam de um restaurante e iam para casa quando foram abordados. Um dos criminosos apontou a arma para a cabeça do ex-policial. Foram roubados celulares, joias, cartões e a moto do casal. Os suspeitos foram presos em flagrante, e os bens, recuperados. Na época, Fontes atuava como secretário da Administração na prefeitura de Praia Grande.

Em maio de 2022, o ex-delegado-geral foi vítima de um assalto, mas na Avenida do Estado, zona sul da capital. Uma dupla em uma motocicleta o abordou, mas desistiu ao perceber que o veículo que Fontes dirigia era blindado.

Dois anos antes, em 2020, Fontes sofreu uma emboscada de assaltantes no Ipiranga. Ele reagiu e chegou a balear um dos criminosos, que conseguiu fugir. Já em 2012, o ex-chefe da Polícia Civil foi abordado por dois homens na Via Anchieta, no ABC.

Houve troca de tiros e um dos suspeitos morreu. Fontes estava junto de uma investigadora da Polícia Civil. Ela foi atingida no pescoço e ficou internada por 45 dias após passar por cirurgia.

Quando atuava à frente do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), Fontes comandou parte das investigações sobre os atentados praticados pelo PCC no Estado.

Foi ele que indiciou alguns dos principais líderes da facção, como Marcos Willians Herbas Camacho, o "Marcola". Também foi responsável pelo indiciamento da mulher de "Marcola" por lavagem de dinheiro da organização criminosa.

A morte de Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado de São Paulo assassinado na Praia Grande, nesta segunda-feira, 15, reascendeu debates sobre a violência e atuação criminosa no litoral do Estado.

Nos últimos dias, quem já havia sinalizado a respeito do tema foi Guilherme Derrite, Secretário de Segurança Pública de São Paulo. Em palestra no Fórum O Otimista Brasil 2025, no dia 8 de setembro, o capitão e deputado federal deu detalhes sobre o "cenário de guerra" que encontrou na Baixada Santista durante as Operações Escudo e Verão, realizadas em 2023 e 2024 na região.

"[As operações] Foram amplamente divulgadas pela mídia; em alguns casos, criticadas por aqueles que não imaginavam o cenário de guerra que foi encontrado lá na Baixada Santista", iniciou Derrite. "Eu quero deixar claro que o confronto é a nossa última opção. Se tem alguém que não deseja o confronto entre a Polícia e criminosos sou eu, porque é o momento mais triste da vida dessa função que eu exerço aqui", ressaltou.

O secretário citou que foram desmobilizadas 27 barricadas, espécie de trincheiras improvisadas, na dimensão da Baixada Santista.

"Não é um cenário de paz e tranquilidade. O que estava se formando ali era a tentativa da criação de um território paralelo dentro do Estado de São Paulo. Nós já vimos esse filme acontecer em outros locais e tenho certeza de que é muito prejudicial", explicou.

Após a morte de Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado-geral de São Paulo, assassinado na Praia Grande, no litoral sul, nesta segunda-feira, 15, a Polícia Civil e a Polícia Militar iniciaram uma verdadeira "caçada" em busca dos criminosos na Baixada Santista. Fontes foi baleado em uma emboscada enquanto saía da sede da Prefeitura de Praia Grande.

Mais de uma centena de policiais da capital foram enviados para a Baixada Santista. "Estamos mobilizando o DHPP e o Deic nessa investigação. É algo muito triste. O doutro Ruy era uma figura emblemática da Polícia Civil e muito atuante no combate ao crime organizado. Estava aposentado desde maio 2023. Vamos priorizar a investigação, mas já determinei a ida do (Batalhão de) Choque para a Baixada para tranquilizar a população", afirmou o secretário da Segurança Púbica, Guilherme Derrite.

Ruy Ferraz Fontes ficou conhecido por sua atuação contra a facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Ele chefiou a Polícia Civil paulista entre 2019 e 2022, após ser nomeado para o cargo de delegado-geral no então governo João Doria (na época no PSDB).

Imagens de câmeras de segurança mostram que Fontes estava em alta velocidade, provavelmente fugindo dos bandidos, quando entra no cruzamento e é atingido por um ônibus. O carro capota. Os bandidos descem da picape com fuzis e atiram no delegado, que reagiu.

Para promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo (Gaeco) ouvidos pelo Estadão, "tudo indica que foi um crime de máfia".

"Policiais militares atenderam rapidamente à ocorrência e localizaram o veículo utilizado pelos criminosos. A cena foi preservada para a realização da perícia, e o caso está sendo registrado na Polícia Civil. Equipes estão em campo, realizando diligências e utilizando ferramentas de inteligência para identificar, prender e responsabilizar os envolvidos", disse, em nota a Secretaria da Segurança Pública.

A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol do Brasil) emitiu nota de pesar e chamou o morte de Fontes de "tragédia sem precedentes". "Trata-se de uma tragédia de proporções inenarráveis, que atinge não apenas a Polícia Civil, mas toda a sociedade brasileira, pois cala uma voz firme e comprometida com a lei, a justiça e a proteção da cidadania. Sua dedicação, coragem e os enormes prejuízos impostos às organizações criminosas fizeram dele alvo da violência que sempre combateu com bravura", diz a nota.

Histórico de atuação contra o PCC

Ruy ficou conhecido por sua atuação contra a facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Ele chefiou a Polícia Civil paulista entre 2019 e 2022, após ser nomeado para o cargo de delegado-geral no então governo João Dória (na época no PSDB).

Em 2006, ele foi o responsável por indiciar toda a cúpula do primeiro Comando da Capital (PCC), inclusive Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, antes de os bandidos serem isolados na penitenciária 2 de presidente Venceslau.