O início de Misericórdia é banal. Jérémie (Félix Kysyl) retorna para a antiga cidade em que morava, no interior da França, para participar do velório do ex-chefe, dando assistência à viúva e ao filho desamparados. Mas isso é apenas a ponta de um iceberg muito maior e mais complicado.
O novo filme de Alain Guiraudie, em cartaz nos cinemas brasileiros, não é uma história sobre luto, retornos inesperados e reencontros. É um comentário bem-humorado sobre o comportamento humano, tentando compreender como o desejo pode ser uma interessante ferramenta social.
Jérémie não está ali naquela pequena cidade apenas tentando se reconectar ou se reencontrar. Ele causa emoções mistas na viúva (Catherine Frot), que não sabe lidar com os sentimentos envolvendo o rapaz; provoca raiva no filho (Jean-Baptiste Durand) do falecido, que também vive sentimentos conflituosos; e mostra relacionamentos curiosos envolvendo um vizinho (Serge Richard) e um abade (Jacques Develay).
Nuances
O filme foi bem recebido nos festivais de Cannes, Munique, Toronto e de Nova York, e foi exibido na Mostra de São Paulo no ano passado; também foi escolhido o melhor filme de 2024 pela Cahiers du Cinéma, superando Segredos de um Escândalo e Zona de Interesse. É um longa-metragem complexo - na forma e no conteúdo. Guiraudie brinca com nossos sentidos e faz com que a jornada de Jérémie seja marcada por nuances, caminhos fechados e vias de mão dupla.
Os personagens estão sempre transitando entre o desejo e o ódio, a culpa e a realização, a verdade e a mentira. Como já foi dito pela crítica internacional, há traços de Teorema, de Pasolini, com esse protagonista que parece ter o amor e o sexo como formas de comunicação e, mais do que isso, de persuasão. É um filme sobre desejo, seja o de Jérémie ou aquele projetado na figura desse rapaz que é lembrado na cidade de diferentes modos e visões.
Guiraudie não se contenta com um filme apenas policialesco. Misericórdia é uma mistura de tudo o que o diretor francês nos apresentou até agora em seu cinema: o caos sombrio e sexual de Um Estranho no Lago, a comicidade de Viens Je t'Emmène, a bizarrice de Pas de Repos pour les Braves. Está tudo ali, num filme em constante transformação.
O terço final de Misericórdia, por exemplo, ganha, inesperadamente, ares cômicos mórbidos, mergulhado em uma ironia mordaz, com cenas tão perturbadoras quanto divertidas. A sequência envolvendo Jérémie e o abade, por exemplo, é uma das grandes cenas do ano - estranha, desconfortável, engraçada.
O diretor não se furta a fazer comentários sociais ao retratar diferentes tipos de hipocrisia, absurdos e relacionamentos fracassados: o homem solitário com medo de se assumir, o outro que usa a violência como substituta ao desejo ou até o padre desejoso, cutucando a ferida de uma igreja com medo de assumir a humanidade de seus representantes.
Misericórdia, assim, fala sobre desejos e sentimentos conflituosos enquanto coloca o espectador contra a parede - seja na relação complicada que estabelece com o protagonista de objetivos escusos, seja no modo como trata o desejo, ora como forma de controle, ora como um simples sentimento. Um filme completo, que coloca o dedo na ferida e segue na contramão de uma Hollywood cada vez mais conservadora e assustada.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
O francês 'Misericórdia' expõe amor, ódio e os caminhos sinuosos do desejo
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