A médica Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é alvo de uma ação de reparação de danos morais por críticas à conduta da direção do Conselho Federal de Medicina (CFM) durante a pandemia de covid-19. A entidade pede uma indenização de R$ 100 mil e a retratação pública da profissional, além da remoção dos comentários do YouTube.
O processo gerou uma onda de apoio à pesquisadora, reconhecida por seus estudos na área de saúde coletiva. Mais de 50 entidades científicas subscreveram a nota de repúdio divulgada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), e manifestações contrárias à ação do CFM foram divulgadas por instituições como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
O órgão ingressou com a ação em agosto de 2024. No texto, a entidade retoma uma entrevista concedida por Ligia ao programa Em Detalhes, do Instituto Conhecimento Liberta, afirmando que a professora teria proferido "críticas infundadas e ofensivas", "com a intenção de desinformar e atingir a honra e a imagem/credibilidade do CFM e do seu corpo conselhal".
Alguns dos trechos da entrevista destacados pelo órgão são:
- "na lista dos eleitos constam médicos de extrema-direita";
- "contra o aborto legal, estão filiados a algum partido político ou defendem o uso de cloroquina";
- "o conselho que já foi alinhado ao governo bolsonarista";
- "relação problemática com o Ministério da Saúde".
Para o CFM, "as afirmações proferidas caracterizam verdadeiro excesso e abuso do direito de manifestação, não sendo meras críticas, mas sim verdadeiros ataques difamatórios à Instituição e ao seu Presidente e Conselheiros, por exemplo, visando destruir a sua credibilidade, no exercício de suas funções".
Junto com o pedido de indenização, o conselho apresentou uma liminar para a imediata remoção do conteúdo do ar, sob a justificativa de que ele disseminaria ódio na internet. Nesse sentido, listou como réus a Editora e Livraria Conhecimento Liberta, responsável pelo programa Em Detalhes, e o Google, dono do YouTube.
O juiz federal José Carlos Motta, responsável por analisar o pedido, negou a liminar. "(... ) Entendo que as manifestações da ré Ligia Bahia em sua entrevista devem ser compreendidas como abarcadas pela liberdade de expressão e de crítica política, ainda que contundentes", escreveu.
"Com efeito, o que se ventilou na mencionada entrevista também foi alvo de críticas à atuação do CFM em outros veículos de imprensa, seja no que tange à sua tolerância na utilização de tratamentos sem eficácia comprovada durante a pandemia de Covid-19, seja no que concerne à recente Resolução CFM nº 2.378/2024, que proibiu aos médicos a interrupção de gravidez nos casos de aborto previsto em lei", acrescentou o magistrado da 19ª Vara Cível Federal de São Paulo. Leia aqui a decisão completa.
Segundo Letícia Caboatan, sócia do escritório Vilhena Silva Advogados e integrante da defesa de Ligia, a expectativa é de que o entendimento na ação de reparação, neste momento em fase de apresentação de provas, seja semelhante.
"Nosso foco central é a questão da liberdade de expressão, um direito constitucional que não pode ser tolido", diz. "Quando o CFM ingressa com uma ação judicial contra uma médica, uma cientista, ele tenta silenciá-la e isso vai contra o princípio constitucional da liberdade de expressão".
A advogada afirma que Ligia expressou opiniões fundamentadas, voltadas à diretoria e não à entidade, e que diferentes profissionais já haviam feito críticas semelhantes à direção do CFM por sua atuação na pandemia e em relação ao aborto legal quando foi concedida a entrevista.
"O médico pode ser de direita, extrema-direita, esquerda, não é essa a pauta da discussão. O que não pode é deixar que a política influencie decisões que deveriam ser baseadas na ciência", diz. "A mera discordância com a crítica que a Ligia fez não justifica a ordem de censura que o CFM busca impor por meio da ação."