Há quase quarenta anos transitando pelo audiovisual brasileiro, José Eduardo Belmonte carrega consigo uma inquietação que o impede de parar. Aos 55 anos, o cineasta nascido em São José dos Campos e criado em Brasília acaba de lançar Quase Deserto, sua mais recente coprodução internacional, filmada em Detroit e que chegou aos cinemas na quinta-feira, 27. O longa marca um ponto de virada na trajetória de um diretor conhecido por abraçar gêneros diversos - do drama intimista ao blockbuster de ação - e que agora expande suas fronteiras para além do Brasil.
Quase Deserto acompanha dois imigrantes latinos indocumentados e uma mulher americana com uma síndrome rara que se cruzam em uma Detroit devastada pela pandemia. Testemunhas de um assassinato, os três embarcam em uma fuga que revela tanto as ruínas urbanas quanto as contradições humanas em tempos de reconstrução. O filme, protagonizado por Angela Sarafyan (de Westworld), Vinícius de Oliveira (de Central do Brasil) e Daniel Hendler (de O Abraço Partido), integrou as programações da Première Brasil no Festival do Rio e da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
"Detroit entrou no filme porque não é apenas uma cidade: é uma paisagem moral", explica Belmonte. "Como é uma cidade que passou por diversas crises, há ali uma mistura de ruína, reinvenção e dignidade ferida que dialoga diretamente com esses tempos distópicos tão carentes de utopias, que era sobre o que queria falar."
A escolha de Detroit como cenário não foi, portanto, aleatória. Para o diretor, o processo foi o inverso do habitual. "Não escolhi Detroit para encaixar a história", diz. "Depois de muito estudar sobre o lugar, a paisagem acabou ditando o ritmo, a luz e até o comportamento dos personagens. Era impossível filmar ali e fazer um filme domesticado."
Carreira plural
Formado em cinema pela Universidade de Brasília, onde teve como professores figuras importantes como Armando Bulcão e Nelson Pereira dos Santos, Belmonte começou sua carreira nos anos 1990 dirigindo videoclipes para bandas nacionais no auge da MTV Brasil - sua parceria mais constante foi com os Raimundos. Desde então, acumulou mais de 30 projetos audiovisuais entre curtas, longas e séries de televisão.
O ponto de virada veio em 2008 com Se Nada Mais Der Certo, que percorreu festivais pelo mundo e conquistou prêmios no Festival do Rio, Cine Ceará e Festival de Cinema Brasileiro de Paris. Depois vieram trabalhos tão distintos quanto o blockbuster Alemão (2014), que levou um milhão de espectadores aos cinemas, e séries como Carcereiros, vencedora do Grande Prêmio do Júri do MIP Drama em Cannes, e O Hipnotizador, da HBO.
"Honestamente, acredito que, no fundo, tudo é audiovisual. O cinema sempre foi essa combinação de impulso lúdico com engrenagem industrial", diz o diretor sobre sua capacidade de transitar entre projetos tão diversos. "Dentro do nosso mercado, diria que transitar entre o independente e o industrial, entre a liberdade quase artesanal de um e a precisão obrigatória do outro, é uma forma de manter o olhar vivo. Um me ensina disciplina, o outro me lembra por que comecei."
Essa versatilidade foi exposta de forma emblemática na última Mostra de Cinema de São Paulo, onde Belmonte apresentou três filmes de uma só vez: além de Quase Deserto, Aurora 15 (sobre uma criatura que ele brinca ser "mais para uma lobi-woman guiada pela lua") e Assalto à Brasileira. "Transitar entre temas tão diferentes não é dispersão; é uma forma de ser", afirma. "Sei que para alguns a minha filmografia pode parecer uma mesa de bar barulhenta, heterogênea, cheia de histórias que não deveriam coexistir, mas coexistem. É nessa colisão que o cinema fica vivo."
O olhar do observador
Há uma marca autoral que atravessa toda a obra de Belmonte: personagens deslocados, à margem, em fricção com o mundo. Mas o diretor rejeita a ideia de que isso seja apenas uma preferência estética. "Esses personagens nascem de uma circunstância histórica. Vivemos num País, e num continente inteiro, construído sobre violência, saque, apropriação, e com uma imaturidade emocional que atravessa tudo."
Essa visão se conecta diretamente com sua formação em Brasília, cidade que ele descreve como cheia de paradoxos. "Projetada como utopia e vivida como distopia, cheia de gente de todos os lugares, mas com uma arquitetura que cria um sentimento quase permanente de estrangeiro, inclusive dentro do próprio país. Ali, a única posição realmente possível era a do observador", diz.
É justamente esse olhar de observador que Belmonte carrega para seus filmes. "Observar, quando se faz cinema, é uma forma de afeto. É também uma forma de crítica. E, principalmente, uma forma de se aproximar das pessoas sem transformá-las em tese", reflete.
O processo de trabalho do diretor é conhecido pelo método batizado de "mala pequena", uma técnica em que ele investiga a essência do roteiro para trazer mais veracidade à história e dar liberdade aos atores. "A função de um diretor, para mim, é preservar a essência e ela sempre nasce dos personagens. São eles que determinam o jeito de fazer", explica.
Mas o tom de seus filmes não é algo planejado rigidamente. Em Quase Deserto, por exemplo, um acidente de produção - a atriz Angela Sarafyan machucou o pé no dia de filmar a primeira sequência de ação - acabou moldando a estética do filme. "Então, em vez de abrir como 'filme de ação americano', percebi que o gesto radical era deixar a desconstrução começar ali mesmo, antes de o espectador perceber que havia algo a desconstruir. Uma fuga que acontece devagar, cheia de lacunas e em silêncio", conta. "Esse tipo de acidente não compromete o tom; ele o revela. Logo, tom não se constrói, ele se conquista, como um território."
O projeto de Quase Deserto nasceu de uma provocação pessoal. "Tudo começou quando um amigo que foi morar fora voltou cheio de perguntas sobre o que é ser brasileiro e latino, e aquilo me acendeu um caminho", conta. A questão se juntou a uma inquietação que surgiu durante a filmagem de Meu Mundo em Perigo. "Até onde meu modo de filmar - rápido, objetivo, coletivo e aberto às contribuições do elenco - poderia ir além das nossas fronteiras?", questiona.
A resposta veio em 2014, quando dirigiu uma série para a HBO no Uruguai com atores de diferentes nacionalidades. Segundo ele, aquela mistura humana desmontou qualquer ideia de cinema como território fechado. Filmar com gente de lugares tão distintos, ouvir os ecos de um mesmo trabalho ressoando em vários países na América Latina, na comunidade latina dos Estados Unidos, reorganizou o modo dele pensar a direção.
Filmar fora do Brasil, assim, se torna uma experiência desestabilizante, mas produtiva. "Filmando fora, você entende muito rápido que nada é dado: logística, equipe, ritmo, até o modo como as pessoas leem uma cena muda. É desestabilizante, mas de um jeito produtivo. A cabeça expande quando você não tem como reproduzir a 'cultura' de casa", afirma.
Belmonte deixa claro, porém, que internacionalização não significa abandono. "Festivais, coproduções, mercados, tudo isso interessa, desde que não transforme o filme apenas num produto para atender a uma fantasia de 'universal'", ressalta. "Estou caminhando para isso, mas aos poucos, a ideia é que faça sentido para os filmes que quero fazer, não para cumprir um checklist de carreira."
Novos projetos e sonhos
No momento, o cineasta está filmando Justino, outra coprodução internacional. Na mesa, tem também um longa de terror no Brasil, outro projeto internacional já encaminhado e as adaptações de dois livros de Ignácio Loyola Brandão, projetos que o acompanham desde a faculdade.
Sobre o momento do cinema brasileiro, Belmonte é realista. "Jabor dizia que o cinema brasileiro era um eterno Lázaro, sempre ressuscitando. Depois de quase 40 anos dentro dele - comecei a dirigir aos 22 -, posso confirmar que a frase não envelhece", diz. "Precisamos reinventar produção, circulação e, sobretudo, abandonar certos fetiches, inclusive aqueles que dividem nossa comunidade cinematográfica."
E é com essa consciência que ele segue adiante, sempre em movimento. "Aprendi cedo a não cair nessa armadilha e a preservar a experiência humana do trabalho", afirma. "E o que mais me anima hoje é tudo que ainda me assusta. É assim que mantenho o olhar vivo e o cinema, nem tanto como vitrine e mais como aventura humana."
Belmonte expande fronteiras, filma em Detroit e fala da 'aventura humana' do cinema
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